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segunda-feira, maio 21, 2012


Aqui fica a versão integral do texto da minha crónica de sexta-feira na Rádio Voz da Ria (por razões de programação a versão emitida era a forma compacta do que aqui está):

Quando o General Franco estava já bastante doente e acamado, um dos seus médicos perguntou-lhe : "Meu general, está o senhor a par do que se passa em Portugal? Não acredita que ali se vai armar uma grande confusão e vai correr muito sangue?" Segundo testemunhos da época, Franco ficou calado durante um bocadinho enquanto todos os médicos o olhavam, expectantes. E em seguida disse: "Não acredite nisso, os portugueses são muito cobardes." E a verdade é que 40 anos de ditadura terminaram sem vítimas.
Esta frase ocorreu-me a propósito do flagelo do inenarrável Acordo Ortográfico de 1990, o maior atentado de sempre à língua portuguesa e auto-estima nacionais, que entre nós se está a implementar de uma forma desmoralizante, insidiosa e que só é possível graças à apatia generalizada.
Em primeiro lugar, estamos perante uma situação absolutamente absurda: Angola e Moçambique ainda não ratificaram o acordo e já anunciaram que não o vão fazer tão cedo. O Brasil ratificou, mas não o cumpre - basta olharmos os sites dos principais jornais e revistas brasileiros para percebermos que nada mudou. Portugal está, pois, a cumprir um acordo que na prática é unilateral e apenas é respeitado pelos próprios portugueses. É um exercício de auto-flagelação absurdo, dispendioso, desnecessário e profundamente lamentável, sobretudo num país tão pouco literado como o nosso. A legalização do analfabetismo não o legitima.
Numa fase em que perdemos a nossa soberania política e económica para a União Europeia e para o FMI, é lamentável que culturalmente alguém esteja a promover outra forma de capitulação - mas de uma forma insolitamente voluntária e a favor de um país, o Brasil, que não aceitou a oferta. Para os brasileiros é totalmente irrelevante a forma como se escreve em Portugal, pois não têm qualquer interesse nessa informação e não estão minimamente dispostos a alterar uma vírgula sequer à sua forma de escrever. A nós, falta-nos em amor próprio o que nos sobra em voluntarismo provinciano. Cumprimos o AO1990 da mesma forma que aderimos ao Euro e a tudo o que sejam imposições normativas envolvendo estrangeiros. Temos medo que pensem mal de nós e gostamos de agradar. Somos o menino que continua a levar a maçã para a professora, mesmo que esta sistematicamente a deite para o lixo logo de seguida.
Como se tudo isto não bastasse, o Acordo Ortográfico de 1990 é, como referiu há poucas semanas o filósofo José Gil, néscio e grosseiro, enfim, algo de perfeitamente absurdo em termos técnicos. E feito com profunda incompetência, acrescento eu.
Com o argumento de que é necessário uniformizar a escrita nos países de língua portuguesa, fez-se precisamente o contrário: sendo verdade que se unificou a grafia de algumas palavras, não é menos verdade que também se criaram novas palavras só para Portugal, permitindo-se que no Brasil estas continuem a ser escritas da mesma forma e desunificando-se o que antes se escrevia da mesma forma! Veja-se o exemplo de "recepção", que no Brasil continua a ser escrita com "p" e em Portugal transformou-se numa irritante e ominipresente recordação da recessão em que vivemos. Hoje em dia é mais fácil e natural ler um texto escrito em português do Brasil do que em "acordês" de Portugal!
Outro argumento que faz perder a paciência a um santo é o do princípio de que "o que não se lê não se escreve", aplicado parcialmente e cheio de excepções, como por exemplo os "h". Tecnicamente a falácia é tal, que se ignorou o facto das consoantes mudas terem também uma função tónica, pois abrem a vogal seguinte. É por isso que temos tendência a ler "recessão" quando alguém escreve "receção", "aspêto" quando se escreve "aspeto" e assim por diante.
Os autores do AO90 foram ainda mais longe e, num inexplicável e absurdo capricho, decidiram ainda suprimir acentos agudos em algumas palavras de tónica grave, introduzindo confusões e criando homografias, das quais a mais estúpida é mesmo da palavra "pára", que passou a ser homógrafa de "para". Alguns hífenes sofreram também com a ira dos acordistas, criando-se casos verdadeiramente absurdos e com impacto no significado das expressões. Veja-se o exemplo de "pequeno-almoço", que ao perder o hífen pode passar a ser confundido com uma refeição leve que ocorra por volta das 12 ou 13 horas...
Tudo isto tem sido aplicado de uma forma completamente anárquica e incoerente, com os diversos órgãos de comunicação social e o próprio Estado a brindarem-nos diariamente com múltiplos exemplos de erros ortográficos (à luz das regras do acordo), estilhaçando a consistência, coerência e sobretudo a estética da língua. É assim que se matam as línguas.
Enfim, poderíamos passar toda uma tarde a compilar o anedotário do AO1990 e certamente que muito ficaria por contar... Despeço-me com mais algumas palavras de José Gil, provavelmente o maior filósofo português vivo, recentemente galardoado com o Prémio Virgílio Ferrreira:
A ortografia é afectiva, polissémica, racional e fugidia, conectiva e disjuntiva (aliterações, ressonâncias, ritmos, cromatismos, etc), indutora de associações com novas palavras e construindo non-sense. Induz um espaço indefinido de criação. (...) Porque contraria este movimento natural da escrita, o Acordo Ortográfico [AO] é néscio e grosseiro. (...) O Acordo mutila o pensamento. A simplificação das palavras, a redução à pura fonética, o "acto" que se torna "ato", tornam simplesmente a língua num veículo transparente de comunicação. Todo o mistério essencial da escrita que lhe vem da opacidade da ortografia, do seu esoterismo, desaparece agora. O fim das consoantes mudas, as mudanças nos hífenes, a eliminação dos acentos, etc, transformam o português numa língua prática, utilitária, manipulável como um utensílio. Como se expusesse todo o seu sentido à superfície da escrita. O AO afecta não só a forma da língua portuguesa, mas o nosso pensamento: com ele seremos levados, imperceptivelmente, a pensar de outro modo, mesmo se, aparentemente, a semântica permanece intacta. É que, além de ser afectiva, a ortografia marca um espaço virtual de pensamento. Com o AO teremos, desse espaço, limites e contornos mais visíveis que serão muros de uma prisão onde os movimentos possíveis da língua empobrecerão. Como numa suave lavagem de cérebro.

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Hoje tenho duas coisas para escrever neste blog. A primeira é isto:

...a segunda estará no texto seguinte.

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