quarta-feira, fevereiro 27, 2013
Constituir uma empresa em Portugal é um pesadelo administrativo, com múltiplos episódios surreais e insólitos. Há muito tempo que não tinha tanta vontade de distribuir baldes de melaço e penas.
sábado, fevereiro 23, 2013
O texto da minha crónica desta semana na RVR (o audio pode ser ouvido aqui):
As epifanias são sentimentos estranhos, de súbita e aguda percepção de coisas que, na verdade, há muito tempo que deveríamos ter observado, mas cuja compreensão faz com que, pelo menos naquele instante, nos sintamos como o mais inteligente dos mortais.
Acontecem quando menos esperamos e surpreendem-nos no nosso dia-a-dia, como se de repente tudo fizesse sentido perante os estilhaços destes meteoritos de sabedoria e clarividência.
A mim aconteceu-me no passado domingo, ao circular de carro perante os restos da festa do Carnaval serôdio que houve em Estarreja. Pairava um ambiente estranho nas ruas, de fim de festa depois do fim de festa, com meia dúzia de indefectíveis ébrios que teimavam em competir entre si pela intensidade com que celebravam momentos que para eles aparentemente teriam uma incompreensível densidade emocional. Não compreendo aquela festa quando a vejo no seu tempo certo e muito menos a entendia naquela versão decadente e arrastada sem esperança pelas ruas.
Foi nessa altura que, resignado, liguei o rádio do carro, ouvi um grupo de espanhóis cantar o "Grândola Vila Morena" junto à Puerta del Sol, no centro de uma manifestação em que participavam milhares de pessoas, e senti um arrepio da cabeça aos pés, como se de repente um puzzle complexo se resolvesse por si só. Era a segunda vez em poucos dias que ouvia esta canção, depois de Passos Coelho ter sido interrompido por ela em plena Assembleia da República e alguns dias antes de Miguel Relvas ter passado pelo mesmo no Porto.
"Grândola Vila Morena" é uma das melhores e mais misteriosas canções de Zeca Afonso, pois por um lado tem uma letra que não é absolutamente clara e por outro é feita de uma forma inteligentíssima, com uma componente rítmica que sugere uma marcha popular inexorável, que a determinada altura necessariamente irá atropelar quem surge pela frente, quase ao estilo das batalhas de baionetas dos séculos XVIII e XIX. Como se isso não bastasse, a canção evoca de uma forma quase incoerente, mas com uma precisão cirúrgica, conceitos como fraternidade e igualdade, para além de ser uma enorme homenagem ao poder e à vontade populares.
No episódio da Assembleia da República é particularmente delicioso o momento em que Assunção Esteves, reformada aos 47 anos com mais de 7 mil euros por mês, pede ao povo para se retirar e, com uma coordenação que parece propositada, a canção chega à parte em que se grita que "o povo é quem mais ordena". Assunção tornou-se deste modo numa personagem involuntária de uma peça de teatro criada contra si e desempenhou o papel na perfeição.
E foi nesse momento e naquele contexto, perante o estranho esgar carnavalesco daqueles adolescentes sem esperança, que percebi o que é esta crise e onde é que está o problema. Tal como os estarrejenses decadentes que voluntariamente se arrastavam pelas ruas à chuva uma semana depois do Carnaval apenas porque lhes apetecia, a ninguém se pode negar a autonomia e auto-determinação. O povo, aqui entendido como todos nós e não como o "proletariado" que tantas vezes se apropria destas ocasiões panfletárias, tem todo o direito de "ordenar" o que bem lhe apetece, e em cada momento. E é por isso que a Troika e os imbecis que localmente a seguem não têm o direito, não podem e não vão conseguir impor e ganhar a luta contra a vontade popular.
Ao emprestarem-nos dinheiro apenas para assegurar que as suas próprias economias não entrariam em espirais recessivas e não por solidariedade, os nossos credores não podem pretender controlar-nos e asfixiar-nos fiscalmente, em nome de preconceitos individualistas e xenófobos e numa lógica de total falta de solidariedade, compreensão e amizade. O problema da Europa, na verdade, é muito mais que uma questão económica ou de coesão política. O problema da Europa é, essencialmente, a falta de fraternidade.
Mas eles que não se preocupem, pois a marcha vai continuar, forte, persistente, contínua, cadente e impossível de parar. E não, eles não vão passar incólumes pelo que nos estão a fazer.
Deixo igualmente também as notas que há pouco coloquei no Facebook sobre esta questão:
Escrevi esta crónica logo após o primeiro "Grândola", quando a gravei já inclui uma referência ao segundo "Grândola" e quando ela foi transmitida já existiam 4 ou 5 "Grândolas" no espaço mediático e alguns exercícios radiofónicos semelhantes. É o que dá ser um gajo muito à frente.
(Mas, para que conste, tudo isto aconteceu num dia em que por um lado me sentia particularmente esquerdista e por outro tinha acabado de fazer as contas aos recorrentes aumentos de impostos que este governo ilegítimo - porque foi eleito com bases programáticas diametralmente opostas ao seu exercício governativo - e cobarde me fez)
(segunda nota: este tipo de perseguições moralistas também faz bem)
(terceira nota: ao contrário do que por aí se diz, isto é tudo menos falta de cultura democrática)
(quarta nota: aliás, isto é que é cultura democrática)
(quinta nota: agora, tal como na altura em que escrevi, gravei e produzi a crónica, estou cheio de sono)
As epifanias são sentimentos estranhos, de súbita e aguda percepção de coisas que, na verdade, há muito tempo que deveríamos ter observado, mas cuja compreensão faz com que, pelo menos naquele instante, nos sintamos como o mais inteligente dos mortais.
Acontecem quando menos esperamos e surpreendem-nos no nosso dia-a-dia, como se de repente tudo fizesse sentido perante os estilhaços destes meteoritos de sabedoria e clarividência.
A mim aconteceu-me no passado domingo, ao circular de carro perante os restos da festa do Carnaval serôdio que houve em Estarreja. Pairava um ambiente estranho nas ruas, de fim de festa depois do fim de festa, com meia dúzia de indefectíveis ébrios que teimavam em competir entre si pela intensidade com que celebravam momentos que para eles aparentemente teriam uma incompreensível densidade emocional. Não compreendo aquela festa quando a vejo no seu tempo certo e muito menos a entendia naquela versão decadente e arrastada sem esperança pelas ruas.
Foi nessa altura que, resignado, liguei o rádio do carro, ouvi um grupo de espanhóis cantar o "Grândola Vila Morena" junto à Puerta del Sol, no centro de uma manifestação em que participavam milhares de pessoas, e senti um arrepio da cabeça aos pés, como se de repente um puzzle complexo se resolvesse por si só. Era a segunda vez em poucos dias que ouvia esta canção, depois de Passos Coelho ter sido interrompido por ela em plena Assembleia da República e alguns dias antes de Miguel Relvas ter passado pelo mesmo no Porto.
"Grândola Vila Morena" é uma das melhores e mais misteriosas canções de Zeca Afonso, pois por um lado tem uma letra que não é absolutamente clara e por outro é feita de uma forma inteligentíssima, com uma componente rítmica que sugere uma marcha popular inexorável, que a determinada altura necessariamente irá atropelar quem surge pela frente, quase ao estilo das batalhas de baionetas dos séculos XVIII e XIX. Como se isso não bastasse, a canção evoca de uma forma quase incoerente, mas com uma precisão cirúrgica, conceitos como fraternidade e igualdade, para além de ser uma enorme homenagem ao poder e à vontade populares.
No episódio da Assembleia da República é particularmente delicioso o momento em que Assunção Esteves, reformada aos 47 anos com mais de 7 mil euros por mês, pede ao povo para se retirar e, com uma coordenação que parece propositada, a canção chega à parte em que se grita que "o povo é quem mais ordena". Assunção tornou-se deste modo numa personagem involuntária de uma peça de teatro criada contra si e desempenhou o papel na perfeição.
E foi nesse momento e naquele contexto, perante o estranho esgar carnavalesco daqueles adolescentes sem esperança, que percebi o que é esta crise e onde é que está o problema. Tal como os estarrejenses decadentes que voluntariamente se arrastavam pelas ruas à chuva uma semana depois do Carnaval apenas porque lhes apetecia, a ninguém se pode negar a autonomia e auto-determinação. O povo, aqui entendido como todos nós e não como o "proletariado" que tantas vezes se apropria destas ocasiões panfletárias, tem todo o direito de "ordenar" o que bem lhe apetece, e em cada momento. E é por isso que a Troika e os imbecis que localmente a seguem não têm o direito, não podem e não vão conseguir impor e ganhar a luta contra a vontade popular.
Ao emprestarem-nos dinheiro apenas para assegurar que as suas próprias economias não entrariam em espirais recessivas e não por solidariedade, os nossos credores não podem pretender controlar-nos e asfixiar-nos fiscalmente, em nome de preconceitos individualistas e xenófobos e numa lógica de total falta de solidariedade, compreensão e amizade. O problema da Europa, na verdade, é muito mais que uma questão económica ou de coesão política. O problema da Europa é, essencialmente, a falta de fraternidade.
Mas eles que não se preocupem, pois a marcha vai continuar, forte, persistente, contínua, cadente e impossível de parar. E não, eles não vão passar incólumes pelo que nos estão a fazer.
Deixo igualmente também as notas que há pouco coloquei no Facebook sobre esta questão:
Escrevi esta crónica logo após o primeiro "Grândola", quando a gravei já inclui uma referência ao segundo "Grândola" e quando ela foi transmitida já existiam 4 ou 5 "Grândolas" no espaço mediático e alguns exercícios radiofónicos semelhantes. É o que dá ser um gajo muito à frente.
(Mas, para que conste, tudo isto aconteceu num dia em que por um lado me sentia particularmente esquerdista e por outro tinha acabado de fazer as contas aos recorrentes aumentos de impostos que este governo ilegítimo - porque foi eleito com bases programáticas diametralmente opostas ao seu exercício governativo - e cobarde me fez)
(segunda nota: este tipo de perseguições moralistas também faz bem)
(terceira nota: ao contrário do que por aí se diz, isto é tudo menos falta de cultura democrática)
(quarta nota: aliás, isto é que é cultura democrática)
(quinta nota: agora, tal como na altura em que escrevi, gravei e produzi a crónica, estou cheio de sono)
sábado, fevereiro 16, 2013
Há dias Francisco José Viegas ironizou com duas imbecilidades do Ministério das Finanças: a fiscalização da exigência de factura e a utilização da expressão "fatura", dizendo que se fosse confrontado com esse pedido responderia grosseiramente e em brasileiro, tal como a ocasião impunha. É absolutamente impressionante a quantidade de gente muito inteligente que não percebeu a fina ironia do texto. Impressionante e preocupante, pois isso significa que o aborto ortográfico está-se a entranhar de uma forma absolutamente lamentável.