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segunda-feira, novembro 17, 2003

Para comemorar a inauguração dos novos estádios de Aveiro (como é que se chama?) e do Dragão (que nome tão infeliz!!!), recordo aqui uma crónica que li na Rádio Voz da Ria no dia 1 de Maio de 2003:

O Saque

Esta semana decidi utilizar esta crónica para falar de uma actividade que, na minha opinião, se tornou numa das mais nocivas para o nosso país. Um pouco surpreendentemente para quem me conhece, estou a referir-me ao futebol. De facto, embora eu seja confessadamente um adepto da modalidade, tenho que admitir que hoje em dia este desporto se tornou num dos principais factores de recessão em Portugal, e que, infelizmente, a situação parece tender para piorar, não se prevendo qualquer alteração do actual estado das coisas.
O futebol tem funcionado como uma espécie de vírus dissimulado, que ataca o nosso país simultaneamente em várias frentes, e infelizmente com uma enorme eficácia.
De facto, e começando por falar em termos económicos, a situação é absolutamente chocante: numa fase em que o país atravessa uma das mais sérias crises económicas e financeiras, gastam-se centenas de milhões de euros na construção de estádios de futebol absolutamente megalómanos e de um luxo ofensivo, quase todos desnecessários e que, como se tudo isto não bastasse, em alguns casos, como é o caso do estádio de Coimbra, vão provocar gravíssimos problemas à organização das cidades. O caso de Coimbra, é aliás emblemático: a construção do estádio numa zona central da cidade vai criar dificuldades enormes a todos os que habitam e trabalham naquela área, pois passará a ser praticamente impossível estacionar na zona do estádio e as deslocações passarão a demorar muito mais tempo, com os previsíveis engarrafamentos que irão surgir. Hoje em dia, ironicamente, é comum ouvirem-se pessoas a dizer que só esperam que a Académica desça para a segunda divisão, pois desse modo o previsível caos será menos notório. No entanto, por todo o país verificamos situações semelhantes: é inacreditável pensar-se que um país que financeiramente está de tanga (como diz o nosso primeiro ministro) se dê ao luxo de deitar abaixo 7 ou 8 estádios que estavam em perfeitas condições de funcionamento, para gastar milhões de euros em 7 ou 8 estruturas novas, que apenas vão receber, na maior parte dos casos, 2 jogos do famigerado Euro 2004!
A Bélgica e a Holanda, países com uma situação económica bastante melhor que a nossa, decidiram juntar-se para que os custos da organização do Euro 2000 fossem mais facilmente suportáveis. O Japão e a Coreia do Sul, também eles países muito mais ricos que Portugal, tiveram que congregar esforços para que a organização do Mundial 2002 fosse possível e os riscos económicos minimizados. Portugal, numa manifestação de arrogância e novo-riquismo sem par, recusou a proposta espanhola de organização conjunta do Euro 2004 e, numa inacreditável inconsciência económica e financeira, decidiu construir 10 novos estádios de futebol, quando bastariam 6 para que a prova pudesse ser realizada. Tudo isto é especialmente mais grave se nos lembrarmos da quantidade de contratados que estão a ser despedidos da administração pública e dos fortíssimos cortes orçamentais e aumentos de impostos que o nosso país teve que realizar para suportar esta megalomania de alguns. Estamos perante uma situação de autêntico assalto às contas públicas, com um dos mais fortes exemplos de desrespeito pela população da história democrática do país. Não acredito que, se se tivesse explicado ao país o que é que estava verdadeiramente em causa no momento da candidatura ao Euro 2004, existisse um só português sem interesses directos no futebol que apoiasse esta medida tão anti-democrática e disparatada.
Para cúmulo, depois de todos nós, com o dinheiro dos nossos impostos e o suor do nosso trabalho, termos pago com um esforço hercúleo a duríssima factura desta absurda competição desportiva, os bilhetes para os jogos por nós organizados são depois vendidos a um preço quase surreal, tornando-os inacessíveis para os bolsos de quase todos os portugueses. Por exemplo, para a final um bilhete pode chegar a custar 270 € (54 contos), e o bilhete mais barato fica em 85 €, ou seja, 17 contos. Isto é um autêntico insulto a todos os portugueses e uma falta de respeito como há muito não se via.
Poder-se-á argumentar, se alguém tiver a desfaçatez de defender o que se fez, que as alegrias proporcionadas pela nossa selecção serão suficientes para fazer o povo esquecer este disparate, e que os benefícios económicos do previsível aumento do número de turistas no nosso país serão enormes, e bastantes para compensar o investimento realizado. Nada mais errado! Quanto à nossa selecção, penso que todos temos ainda na memória os tristes episódios de falta de profissionalismo, ganância e má educação que os nossos jogadores protagonizaram há menos de um ano no mundial da Coreia e Japão. Vimos pessoas que ganham 100 mil contos por mês a dizerem que só jogariam pela selecção se os prémios fossem bons, jogadores a agredirem árbitros, treinadores em incursões nocturnas por casas de má fama, dirigentes a baterem com a porta a meio, etc. A péssima imagem que aquele grupo de indivíduos sem formação deu do país ficou na memória de todos e terá certamente enormes custos para Portugal, mesmo a nível económico. E em relação às supostas vantagens financeiras e económicas do Euro 2004 para Portugal, basta uma pergunta para rebater este argumento: alguém conhece um só economista que diga que o Euro 2004 vai ser bom para o país?
Se juntarmos a toda esta irresponsabilidade económica os perversos efeitos morais que todo este processo está a ter, o quadro negro fica definitivamente traçado. É triste observar-se a degradação de princípios, a impunidade e até a promiscuidade que neste momento une os mundos da política e do futebol. São inaceitáveis os joguinhos de manipulação com que se pressionam autarcas não alinhados, como foi o caso de Rui Rio, ou a forma interesseira como outros, como os Presidentes da Câmara de Braga e de Gondomar, tentam arrastar a todo o custo, passando por cima de tudo e todos, o máximo de benefícios para os seus municípios e clubes, mesmo que com isso arruínem as contas públicas.
É esta degradação moral que permite que um homem como Gilberto Madaíl, o responsável político e moral por uma grande parte de todos estes males, possa ainda ser quem preside aos destinos do futebol no nosso país, utilizando as mais estalinistas técnicas de asfixia política de todos quantos se tentam opor ao seu reinado. É esta mesma selva moral que faz com que um homem com a honorabilidade e até o sucesso profissional de Laszlo Boloni seja expulso do nosso país pela porta pequena, talvez por não ter cedido à tentação de pactuar com todos os que lenta, mas progressivamente, corroem as estruturas morais do desporto e até da própria sociedade portuguesa.
O futebol é, pois, em Portugal, um sector que vive acima das suas possibilidades, sem respeito pela lei do país, que a todos parece cobrar impostos menos àqueles que ganham milhares de contos por mês sem os declarar, e com a cumplicidade de uma classe política que acaba por ver na sua própria impopularidade o reflexo natural dos seus actos. Não deixa de ser irónico, contudo, que por já não ter qualquer respeito pelos políticos e governantes, e na ausência de algo mais importante, o povo se volte precisamente para o futebol.

Mantenho quase tudo o que escrevi, mesmo nesta fase de unanimismo deslumbrado. Apenas faço uma ressalva: até acredito que o Euro 2004 possa dar algum impulso à nossa economia. A questão é que provavelmente seria possível conseguir os mesmos resultados com um investimento muito menor... cortando, por exemplo, na construção de 3 ou 4 estádios!


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