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segunda-feira, janeiro 19, 2004

Nem de propósito. Já depois de ter escrito o post anterior, dei uma volta pela blogosfera e encontrei uma referência a este interessante artigo de opinião de Correia de Campos no Público. Para quem não se lembra, Correia de Campos foi o melhor ministro da saúde dos últimos 10 anos, embora apenas tenha estado alguns meses no cargo e é o percursor de muitas das medidas que o actual ministro Luis Filipe Pereira levou ao extremo, como é o caso da empresarialização dos hospitais. É por isso que este artigo é tão importante:

Mensagens para Descrer
Por CORREIA DE CAMPOS
Sexta-feira, 16 de Janeiro de 2004


Na semana passada, a página inteira de um semanário, em publicidade paga, anunciava "um inequívoco aumento do acesso dos cidadãos e da utilização da capacidade instalada" nos hospitais SA. Os dados apresentados como "resultados" referiam-se aos meses de Janeiro a Outubro, comparando 2003 com 2002, concluindo por mais 4,7 por cento de internamentos, mais 9,4 por cento de consultas, mais 0,7 por cento urgências, mais 17,9 por cento em hospital de dia e mais 19,1 por cento de cirurgias.

Recordemos os factos. No final de 2002, 34 hospitais de média dimensão e gestão "razoável" tiveram o passivo absorvido com capital fresco, uma linha directa de comando e controlo, objectivos exigentes, mais quantitativos que qualitativos, administrações com pessoas escolhidas, na maior parte dos casos de entre interessados nas metas políticas do Governo. Com esta engenharia esperava-se um milagre.

Não foi o que aconteceu. Usando como comparador a totalidade de hospitais, onde se incluem, além dos SA, os de défice catastrófico, os dispendiosos hospitais de ensino e os pequenos hospitais de nível um, e tendo por fonte os bem elaborados relatórios do SNS, publicados pelo Instituto de Gestão Informática e Financeira (IGIF), um aumento global de 4,7 doentes saídos de internamento não ocorreu só em 2003 - já tinha ocorrido também em 2000. Entre 2000 e 2001 observou-se um aumento de 6,7 por cento na consulta externa. Conforme se pretenda exaltar a redução das urgências, ela foi possível, em 2000, em menos 2,2 por cento, ou valorizar o seu crescimento, pode usar-se 2001, onde aumentaram 2,6 por cento. Comparar intervenções cirúrgicas como o anúncio faz é enganador, se não as desagregarmos por complexidade (grande, média, pequena), por local (bloco, urgência, ou hospital de dia) e por programação (electiva ou regular). Um hospital pode estar a fazer mais cirurgias electivas do programa Peclec e menos cirurgias regulares. Produz mais, mas produz pior, se as segundas forem mais complexas e mais urgentes que as primeiras.

Análises parciais de um só ano, neste caso dez meses, são enganadoras, não dispensando o acompanhamento de uma série cronológica.

Hospitais que tiveram o bloco operatório e parte do internamento encerrados para obras, reabrindo, podem mostrar crescimento anormal. Outros, recém-inaugurados, só adquiriram velocidade de cruzeiro no período em apreciação. Há vários na lista dos SA.

Dados ainda menos credíveis são os que o anúncio chama erradamente "custos", em vez de gastos, pretendendo comparar dez meses de execução orçamental de 2003 com o período homólogo do ano anterior, e com o orçamentado para o ano, anunciando uma "redução" de 6,1 por cento e de 5,9 por cento, respectivamente. Ora, nos hospitais, tal como na administração pública em geral, é no final do ano que se acumulam facturas e muitas delas só nos primeiros meses do ano seguinte são recebidas, verificadas, processadas e liquidadas. Por outro lado, os autores do anúncio ignoraram as queixas públicas da indústria de medicamentos e de material de consumo clínico sobre o montante da dívida global de 513 milhões de euros, no final de Novembro último, 325 milhões já vencidos (a mais de 90 dias). Admitamos que os hospitais SA titulam apenas 50 por cento dessa dívida. Terão que acrescer aos seus 1502 milhões de euros de gastos identificados mais 256, ou seja, mais 17 por cento? Lá se vão as belas, mas inúteis comparações.

O Governo fez um pequeno esforço de transparência: colocou na página do IGIF as contas de 2001 e alguma outra informação estatística. Mas o ânimo propagandístico de um anúncio de página inteira (pago por todos nós) estragou tudo. Se quer que nele acreditemos, publique o relatório do SNS de 2002 quanto antes e semestre a semestre, ou até mais frequentemente, publique dados estatísticos comparáveis e não sazonais. Não precisa de reinventar a roda com novos indicadores ambíguos, quando tem séries cronológicas completas de indicadores testados e fiáveis.

Quem concorda com maior autonomia de gestão nos hospitais recebe uma mensagem em que é impossível acreditar. Pela mensagem se descrê do conteúdo.


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