sexta-feira, abril 09, 2004
Aqui vai o texto do meu artigo de ontem no Jornal da Ria:
Emagrecer
O motivo pelo qual grande parte dos deputados municipais decidiu aprovar a adesão de Estarreja à Grande Área Metropolitana de Aveiro (GAMA) estava mais associado a um sentimento de impotência perante uma decisão tomada a nível central do que propriamente a uma convicção política forte. Nos dias que antecederam a última Assembleia Municipal era frequente ouvirem-se comentários do género "...já que temos que pertencer a uma área metropolitana, que seja à de Aveiro" ou "... depois de criada a GAMA, não podemos ficar de fora". Ou seja, esta decisão foi encarada pelos parlamentos municipais como uma imposição do governo ("estão aqui as áreas metropolitanas, comunidades urbanas, etc. – agora amanhem-se e distribuam-se como vos apetecer") e não como uma iniciativa nascida a partir do poder local.
Por seu lado, o governo tem nos últimos dias tentado lavar as mãos de todo o processo. No momento em que escrevo estas linhas acabei de ouvir na TSF Miguel Relvas, o Secretário de Estado da Administração Local, a afirmar que "esta é a verdadeira descentralização, pois é feita de baixo para cima e não nasce de uma imposição do Terreiro do Paço". Ou seja, para o governo a responsabilidade política deste processo é dos órgãos autárquicos locais ("os que têm a verdadeira legitimidade para decidir sobre esta matéria"), enquanto que estes se limitam a "encaixar" num enquadramento previamente definido. A culpa, mais uma vez, vai solteira...
A questão da legitimidade deste processo é também interessante: o mesmo argumento que serviu para se "chumbarem" as novas propostas em relação à lei do aborto (a existência de um referendo ganho pelo "Não") não serve para esta regionalização encapotada. Ou seja, os referendos parecem ter um prazo de validade definido casuisticamente e à medida das necessidades políticas...
Analisemos o caso da GAMA e de Estarreja. O distrito de Aveiro (até quando é que existirá?) viu os concelhos que o compõem serem distribuídos por três áreas metropolitanas (Aveiro, Porto e Coimbra), ao passo que a GAMA não "anexou" nenhum concelho que não pertencesse já ao distrito. Ou seja, a GAMA mais não é que um distrito de Aveiro emagrecido, que perdeu alguns dos seus concelhos mais atractivos para as áreas metropolitanas vizinhas. Veja-se o exemplo de Santa Maria da Feira (o concelho mais populoso e industrializado do distrito de Aveiro) e São João da Madeira (um dos concelhos portugueses em que a razão entre a produção de riqueza e o número de habitantes é superior), que foram anexados pela área metropolitana do Porto. Outros concelhos do nosso distrito que também se sentiam emocionalmente ligados ao Porto acabaram por ser diplomaticamente aconselhados a continuarem sob a alçada de Aveiro (como é o caso de Vale de Cambra), o que não deixa de ser curioso.
Em relação a Estarreja, o que poderíamos nós fazer? Imaginemos que os estarrejenses não queriam pertencer à GAMA – qual seria a alternativa? Será que nos aceitariam na área metropolitana do Porto ou de Coimbra? Obviamente que uma ligação deste género seria disparatada... Ou seja, a verdadeira escolha para o concelho de Estarreja era entre pertencer à GAMA ou não pertencer a nenhuma área metropolitana, com todos os custos de perda de influência (e fundos comunitários e estatais...) que inevitavelmente surgiriam. Por tudo isto, a última Assembleia Municipal serviu apenas para o nosso parlamento local "carimbar" uma decisão na qual não participou nem foi ouvido e para a qual foi empurrado sem qualquer hipótese de alternativa!
A confusão agora criada (Estarreja pertence à Beira Litoral, ao distrito de Aveiro, à GAMA, à NUT de Entre o Douro e o Vouga, à Associação de Municípios da Ria, à Comissão Coordenadora da Região Centro, à ARS do Centro, etc.) é absolutamente insustentável e vai inevitavelmente ter consequências no futuro. E, tal como qualquer criança que recebe um brinquedo novo, a tendência vai ser para se utilizar principalmente a classificação mais recente, ou seja, a GAMA. É natural e previsível que a organização do território nacional seja feita em torno das estruturas agora criadas, utilizando como argumento a "união política decidida pelos próprios municípios". Deste modo, é também provável e lógico que com o tempo alguém chegue à conclusão que não faz sentido existirem círculos eleitorais baseados nos distritos quando o país está principalmente dividido em áreas metropolitanas... ou seja, os deputados e fundos estatais deverão ser distribuídos tendo em conta as novas formas de associação intermunicipal. Ora, a GAMA é muito mais pequena e bem menos representativa que o "antigo" distrito de Aveiro, pelo que não terá como argumentar para manter quer o seu peso eleitoral, quer a sua capacidade reivindicativa junto do governo central... para bom entendedor, meia palavra basta: esta "descentralização feita de baixo para cima" é na realidade (e na prática) uma regionalização sob pseudónimo, que discretamente e sem o indispensável debate público alargado, cedeu aos interesses dos principais centros aglutinadores de influências. O poder com que algumas áreas metropolitanas saem deste processo é enorme e dificilmente será controlável pelo governo central, que assim acaba por ser responsável por um processo de desagregação do país feito de forma desordenada e à medida dos interesses instalados neste momento.
A anterior proposta de regionalização tinha pelo menos a virtude de ser frontal e conhecida pelas populações, embora tivesse vários aspectos susceptíveis de correcção. Esta descentralização em roda livre tem consequências previsíveis e graves (como algumas das que enuncio neste texto) e é um processo perigoso e bastante arriscado, pois abre caminho a todo o tipo de pressões egoístas e caciquismos locais. O país já dispunha de estruturas potencialmente descentralizadoras (províncias, distritos, concelhos), bem implementadas e aceites pelas populações, pelo que esta medida é apenas uma forma de ajustar o poder local a algumas conveniências.
Um dos argumentos que mais impacto teve no período de discussão do referendo da regionalização era a criação de tachos que supostamente estaria associada a este processo. Neste caso a situação deve ser diferente... pelo menos não faz sentido acenar com utensílios de cozinha a quem se tenta emagrecer!
Emagrecer
O motivo pelo qual grande parte dos deputados municipais decidiu aprovar a adesão de Estarreja à Grande Área Metropolitana de Aveiro (GAMA) estava mais associado a um sentimento de impotência perante uma decisão tomada a nível central do que propriamente a uma convicção política forte. Nos dias que antecederam a última Assembleia Municipal era frequente ouvirem-se comentários do género "...já que temos que pertencer a uma área metropolitana, que seja à de Aveiro" ou "... depois de criada a GAMA, não podemos ficar de fora". Ou seja, esta decisão foi encarada pelos parlamentos municipais como uma imposição do governo ("estão aqui as áreas metropolitanas, comunidades urbanas, etc. – agora amanhem-se e distribuam-se como vos apetecer") e não como uma iniciativa nascida a partir do poder local.
Por seu lado, o governo tem nos últimos dias tentado lavar as mãos de todo o processo. No momento em que escrevo estas linhas acabei de ouvir na TSF Miguel Relvas, o Secretário de Estado da Administração Local, a afirmar que "esta é a verdadeira descentralização, pois é feita de baixo para cima e não nasce de uma imposição do Terreiro do Paço". Ou seja, para o governo a responsabilidade política deste processo é dos órgãos autárquicos locais ("os que têm a verdadeira legitimidade para decidir sobre esta matéria"), enquanto que estes se limitam a "encaixar" num enquadramento previamente definido. A culpa, mais uma vez, vai solteira...
A questão da legitimidade deste processo é também interessante: o mesmo argumento que serviu para se "chumbarem" as novas propostas em relação à lei do aborto (a existência de um referendo ganho pelo "Não") não serve para esta regionalização encapotada. Ou seja, os referendos parecem ter um prazo de validade definido casuisticamente e à medida das necessidades políticas...
Analisemos o caso da GAMA e de Estarreja. O distrito de Aveiro (até quando é que existirá?) viu os concelhos que o compõem serem distribuídos por três áreas metropolitanas (Aveiro, Porto e Coimbra), ao passo que a GAMA não "anexou" nenhum concelho que não pertencesse já ao distrito. Ou seja, a GAMA mais não é que um distrito de Aveiro emagrecido, que perdeu alguns dos seus concelhos mais atractivos para as áreas metropolitanas vizinhas. Veja-se o exemplo de Santa Maria da Feira (o concelho mais populoso e industrializado do distrito de Aveiro) e São João da Madeira (um dos concelhos portugueses em que a razão entre a produção de riqueza e o número de habitantes é superior), que foram anexados pela área metropolitana do Porto. Outros concelhos do nosso distrito que também se sentiam emocionalmente ligados ao Porto acabaram por ser diplomaticamente aconselhados a continuarem sob a alçada de Aveiro (como é o caso de Vale de Cambra), o que não deixa de ser curioso.
Em relação a Estarreja, o que poderíamos nós fazer? Imaginemos que os estarrejenses não queriam pertencer à GAMA – qual seria a alternativa? Será que nos aceitariam na área metropolitana do Porto ou de Coimbra? Obviamente que uma ligação deste género seria disparatada... Ou seja, a verdadeira escolha para o concelho de Estarreja era entre pertencer à GAMA ou não pertencer a nenhuma área metropolitana, com todos os custos de perda de influência (e fundos comunitários e estatais...) que inevitavelmente surgiriam. Por tudo isto, a última Assembleia Municipal serviu apenas para o nosso parlamento local "carimbar" uma decisão na qual não participou nem foi ouvido e para a qual foi empurrado sem qualquer hipótese de alternativa!
A confusão agora criada (Estarreja pertence à Beira Litoral, ao distrito de Aveiro, à GAMA, à NUT de Entre o Douro e o Vouga, à Associação de Municípios da Ria, à Comissão Coordenadora da Região Centro, à ARS do Centro, etc.) é absolutamente insustentável e vai inevitavelmente ter consequências no futuro. E, tal como qualquer criança que recebe um brinquedo novo, a tendência vai ser para se utilizar principalmente a classificação mais recente, ou seja, a GAMA. É natural e previsível que a organização do território nacional seja feita em torno das estruturas agora criadas, utilizando como argumento a "união política decidida pelos próprios municípios". Deste modo, é também provável e lógico que com o tempo alguém chegue à conclusão que não faz sentido existirem círculos eleitorais baseados nos distritos quando o país está principalmente dividido em áreas metropolitanas... ou seja, os deputados e fundos estatais deverão ser distribuídos tendo em conta as novas formas de associação intermunicipal. Ora, a GAMA é muito mais pequena e bem menos representativa que o "antigo" distrito de Aveiro, pelo que não terá como argumentar para manter quer o seu peso eleitoral, quer a sua capacidade reivindicativa junto do governo central... para bom entendedor, meia palavra basta: esta "descentralização feita de baixo para cima" é na realidade (e na prática) uma regionalização sob pseudónimo, que discretamente e sem o indispensável debate público alargado, cedeu aos interesses dos principais centros aglutinadores de influências. O poder com que algumas áreas metropolitanas saem deste processo é enorme e dificilmente será controlável pelo governo central, que assim acaba por ser responsável por um processo de desagregação do país feito de forma desordenada e à medida dos interesses instalados neste momento.
A anterior proposta de regionalização tinha pelo menos a virtude de ser frontal e conhecida pelas populações, embora tivesse vários aspectos susceptíveis de correcção. Esta descentralização em roda livre tem consequências previsíveis e graves (como algumas das que enuncio neste texto) e é um processo perigoso e bastante arriscado, pois abre caminho a todo o tipo de pressões egoístas e caciquismos locais. O país já dispunha de estruturas potencialmente descentralizadoras (províncias, distritos, concelhos), bem implementadas e aceites pelas populações, pelo que esta medida é apenas uma forma de ajustar o poder local a algumas conveniências.
Um dos argumentos que mais impacto teve no período de discussão do referendo da regionalização era a criação de tachos que supostamente estaria associada a este processo. Neste caso a situação deve ser diferente... pelo menos não faz sentido acenar com utensílios de cozinha a quem se tenta emagrecer!
Comments:
Enviar um comentário