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segunda-feira, março 14, 2005

A vingança serviu-se fria

Como é fácil de adivinhar, fiquei em estado de choque com o anúncio da passagem da venda de medicamentos não sujeitos a receita médica das farmácias para "outros estabelecimentos que não farmácias". Trata-se de uma medida completamente despropositada, tecnicamente errada e politicamente miserável, pelas razões que passarei a expor.
A ideia é completamente despropositada porque não há nenhuma boa razão para retirar esses medicamentos das farmácias:
- Não existem problemas de acessibilidade às farmácias (que estão abertas 24 horas e existem em todo o país, ao contrário, por exemplo, das grandes superfícies...);
- A lei obriga a que os preços desses medicamentos sejam marcados pelos seus fabricantes e não pelas farmácias, pelo que mesmo que a sua venda seja feita noutros locais, o preço ao público será o mesmo - a única diferença será provavelmente na muito maior margem de lucro que os grandes grupos conseguirão negociar com os laboratórios e que as pequenas farmácias não conseguem;
- Em Portugal não há problemas de acesso ao medicamento. Os mesmos medicamentos existem nas mesmas quantidades e ao mesmo preço em todo o país, 24 horas por dia, 365 dias por ano. Somos (éramos?) considerados um dos países europeus mais avançados nesta área. Os problemas do sector da saúde em Portugal não têm nada a ver com a possibilidade de se encaixar mais meia dúzia de aspirinas no meio dos sacos de arroz, fruta, bifes ou papel higiénico. Estudos recentes demonstram que o grau de satisfação da população com os serviços prestados pelas farmácias ronda os 95%.
Ou seja, não havia uma necessidade de uma medida como esta no nosso sistema de saúde.
Para além disso, esta medida é tecnicamente errada porque:
- Ao contrário da ideia que alguns têm tentado fazer passar, a venda de medicamentos não sujeitos a receita médica fora das farmácias não existe "em todos os países desenvolvidos". Aliás, antes pelo contrário: as excepções são os EUA (reconhecidamente um dos piores sistemas de saúde do mundo...) e o Reino Unido. No resto da Europa a legislação é semelhante à portuguesa. E nos países em que se vendem medicamentos nos supermercados existem vários estudos científicos sérios que demonstram o que intuitivamente todos os que trabalham na área da saúde sabem ser óbvio e inevitável: o uso inadequado de medicamentos não sujeitos a receita médica é um problema de saúde pública, com graves consequências quer para os doentes individualmente, quer para o próprio sistema nacional de saúde, que depois gasta mais alguns milhõezitos de euros a tratar todas essas doenças iatrogénicas. Ou seja, estamos a importar um problema de saúde que em Portugal tinha até agora pouca expressão;
- Esta medida não representa qualquer poupança para o estado: os medicamentos em causa não são comparticipados e o seu pagamento é feito integralmente pelos utentes.
Ou seja, não há uma razão técnica que possa justificar esta lei.
Por último, o carácter politicamente miserável deste acto:
- O principal motivo porque o povo português deu a José Sócrates o poder absoluto foi a saturação da política de soundbytes e medidas avulsas de Santana Lopes. E começar o mandato desta forma é um péssimo sinal: Sócrates não falou de medidas globais para resolver os problemas do crescimento da despesa do estado com a saúde, das listas de espera nos hospitais e centros de saúde, da falta de médicos, etc. Simplesmente atirou para o ar uma "balela" para distrair a opinião pública, ganhar popularidade, dar imagem de "político que enfrenta os interesses corporativistas" e não resolver problema nenhum. Ou seja, Sócrates começa o mandato a fazer precisamente o mesmo tipo de actos que custaram o despedimento ao seu antecessor...
- Para quem acompanha de perto as questões das políticas de saúde uma medida como esta não é, de modo algum, uma surpresa, sobretudo depois que se soube o nome do ministro da saúde. Correia de Campos tinha sido o pai da peregrina e ridícula ideia das "farmácias sociais", a que a ANF erradamente reagiu de uma forma que, embora fosse totalmente legítima, era claramente demasiado agressiva e impetuosa. O PS perdeu as eleições, a questão saiu dos jornais com a concessão de algumas farmácias às misericórdias e nunca mais ninguém falou no assunto. Mas ficou o rancor pessoal de Correia de Campos, reconhecidamente um grande especialista na área da Economia da Saúde, que havia sido publicamente ridicularizado pela ANF. Ao chegar ao poder, Correia de Campos induz Sócrates a tomar uma medida que ele sabe perfeitamente que não vai resolver nada e que visa apenas ajustar contas com o seu passado recente. Depois de termos tido um ministro que foi demitido por mudar a lei para que a filha dum colega entrasse na universidade, temos agora outro ministro que muda a lei para se vingar pessoalmente de toda uma classe profissional (sim, porque isto não afecta apenas os farmacêuticos proprietários de farmácias), num acto que ainda por cima terá consequências negativas para a saúde pública. Para estes senhores, a lei é um mero objecto do qual eles se podem servir para resolver os seus problemas pessoais - a esquizofrenia do poder na sua versão mais crua.
Para concluir, as consequências de tudo isto:
- Em termos imediatos, as farmácias serão muito pouco afectadas por esta medida. Os medicamentos não sujeitos a receita médica representam cerca de 8% do total de vendas das farmácias. Mesmo que se percam 4 ou 5% destes para outras superfícies, os valores serão negligenciáveis, sobretudo se comparados com o crescimento anual de 12% ao ano dos medicamentos sujeitos a receita médica, "herdados" da aplicação das leis de Luís Filipe Pereira;
- Uma das questões que está realmente em causa com este disparate legislativo é o prestígio da profissão farmacêutica, que arde em fogo lento em fóruns TSF e artigos de jornal. Os farmacêuticos têm uma licenciatura de 5 anos mais 6 meses de estágio com um grau de especialização e conhecimento sobre medicamentos muitíssimo mais evoluído e complexo que os proporcionados por qualquer outra licenciatura e sinceramente não mereciam, enquanto classe, esta falta de respeito. Sinceramente, é isto que me custa mais: Correia de Campos quis vingar-se de alguns farmacêuticos proprietários de farmácias e acabou por iniciar uma autêntica vaga de fundo contra uma classe profissional, a qual está a ser miseravelmente aproveitada por outros intervenientes com interesses no sector;
- Tal como disse atrás, não acredito que Correia de Campos seja tão ingénuo como poderia parecer a partir da simples análise avulsa desta medida. O que verdadeiramente se está a pretender desencadear é um processo de liberalização selvagem do mercado das farmácias, com a inevitável invasão do sector pelas multinacionais que já operam noutros países, cuja análise deixarei para outra oportunidade. No entanto, não deixa de ser irónico que um governo de um partido supostamente esquerdista como o PS acabe por ser o responsável pela medida mais neoliberal dos últimos tempos no sector da saúde!

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