domingo, abril 24, 2005
Aqui fica o texto da minha crónica de hoje no programa "Feira da Ladra" na Rádio Voz da Ria:
Na véspera do 25 de Abril o tema da liberdade, da revolução e das convicções políticas é provavelmente o mais óbvio e sobretudo o mais inevitável.
Eu nasci em 1975, ou seja, no ano seguinte à revolução e já depois do célebre "verão quente de 75". O que quer dizer que cresci e vivi sempre em liberdade e numa época em que não existiram conflitos significativos em Portugal. Vivi sempre num tempo de democracia tranquila, embora com a memória da revolução e do regime que a antecedeu bem presente.
Pertenço a uma geração que olha para Abril e para a ditadura como partes da história que não se aprenderam apenas nos livros, mas principalmente a partir de conversas que ao longo de toda a vida tivemos com familiares, amigos e conhecidos. Muito provavelmente, todos temos uma visão distorcida do que verdadeiramente se passou há 31 anos, pois em relação a este tema, e por maior que seja o esforço em contrário, a verdade é que ninguém pode dizer que seja isento. Pela simples razão de que não existem pessoas completamente assépticas e sem sentimentos ou simpatias, e também porque todos os que viveram a história na primeira pessoa têm, antes de tudo o mais, uma visão essencialmente pessoal dos acontecimentos. É a própria natureza humana que faz com que as coisas assim sejam. É provavelmente ainda demasiado cedo para alguém poder contar verdadeiramente a história de Abril e não será ainda esta geração que recebeu a história em segunda mão, e à qual eu claramente pertenço, que terá o distanciamento e clarividência suficientes para avaliar com independência o que aconteceu em Abril de 74.
O conceito duma revolução em que o povo sai para a rua e faz cair pacificamente um regime, com as armas enfeitadas com cravos e não com balas é profundamente romântico e a sua importância vai muito além do simples e tecnocrático rigor histórico.
Abril para mim é muito mais um estado de espírito que propriamente uma data histórica. O 25 de Abril significa uma momento para começar de novo, para reconstruir a sociedade, para tentar melhorar o mundo, para romper barreiras. Enfim, é fundamentalmente uma oportunidade para sonhar e acreditar. É uma das datas mais positivistas que temos no nosso calendário e serve para todas as ideologias democráticas. Todos os que se movem por convicções genuínas têm em Abril uma referência obrigatória. Porque no dia 25 de Abril de 1974 as pessoas começaram a acreditar que tudo era possível.
O 25 de Abril é de todos e é principalmente uma data em que a tolerância e a convivência democrática deveriam ser valorizadas. Porque foi precisamente contra a ausência destes valores que se ergueu a revolução, independentemente do que possa ter acontecido depois.
É por isto que de vez em quando me irrito com a relação que alguns partidos e personalidades políticas têm com o 25 de Abril. Alguns sectores da esquerda consideram-se donos da revolução e algumas pessoas da direita tentam subverter ou condicionar o espírito de Abril. Foi assim há um ano com Nuno Morais Sarmento, que protagonizou o célebre episódio do "Abril é evolução" e é quase sempre assim quando políticos e partidos de esquerda se sentem desesperados. Ainda hoje acredito que Santana Lopes ganhou a Câmara de Lisboa a João Soares principalmente devido à forma bacoca como este decidiu orientar a sua campanha em torno dos valores do 25 de Abril, apresentando Santana como um símbolo do antigo regime.
Talvez para a geração dos que viveram sempre em liberdade seja mais fácil perceber a evolução da sociedade do pós-Abril. Em Portugal passámos dum período, no fim da década de 70 e início dos anos 80, em que os partidos mais à direita se intitulavam "centristas", para o que temos hoje, em que os partidos se distribuem de uma forma mais homogénea pelo espectro ideológico. Esta evolução da sociedade não tem nada a ver com o que aconteceu no 25 de Abril. Abril foi revolução. A evolução veio a seguir.
Em Abril gosto de recordar alguns episódios para os quais hoje olho com um sorriso nos lábios, mas que me marcaram e de certa forma representam o modo como os conceitos e ideologias evoluíram no nosso país.
Para mim, tudo começou em 1975. Nasci numa família esquerdista e que não gostava do antigo regime. Lembro-me de ser muito pequeno e ver o mundo a preto e branco: havia os bons (que eram os comunistas e, moderadamente, os outros partidos de esquerda) e os maus, mais concretamente todos os partidos à direita do lado esquerdo do PS. Álvaro Cunhal era para mim um velhinho simpático e bondoso, Mário Soares um vendido à direita e Sá Carneiro a personificação do mal. Freitas do Amaral era encarado apenas um lacaio daquele a quem eu chamava "o carneirão". Também gostava de Ramalho Eanes, pois achava-o um homem sério e que estava sempre a tramar o PPD. Lembro-me de um dia em que, tinha eu cerca de 5 anos, fugi da loja dos meus avós maternos e andei pelas ruas de Canelas a recolher panfletos de propaganda da AD. Juntei uma quantidade enorme e rasguei-os em mil pedacinhos, um a um, até os pedaços ficarem tão pequeninos que era quase impossível voltar a rasgá-los. Quando os meus pais chegaram a casa e viram a montanha de papéis que eu tinha acabado de produzir ralharam-me severamente, explicaram-me que destruir propaganda eleitoral era crime e proibiram-me de voltar a cometer tal acto. Senti-me injustiçado e achei-os uns frouxos. A cara rasgada de Sá Carneiro era para mim um símbolo de triunfalismo. Sinceramente, nesse dia (e apesar do castigo) senti-me um herói.
Também me recordo do dia em que morreu Sá Carneiro e sobretudo do seu funeral. Foi muito provavelmente o momento do meu primeiro choque com o outro lado da realidade. A RTP transmitiu o funeral em directo e eu fiquei profundamente impressionado quer com a multidão presente, quer com os slogans laudatórios gritados quase em uníssono. Ainda hoje me lembro de ouvir ecoar a frase mil vezes repetida "Carneiro, amigo, o povo está contigo", que na altura me deixou absolutamente surpreendido. Lembro-me perfeitamente de ter perguntado aos meus pais: se Sá Carneiro era tão mau como eles me diziam, como é que havia tanta gente a gostar dele? Sinceramente já não sei qual foi a resposta que me deram.
Estávamos nos primeiros anos da democracia e numa sociedade muito mais politizada que a actual. Não havia governos que durassem até ao fim das legislaturas, mas apesar de tudo tenho a sensação que Portugal vivia ainda a fase do sonho. Mesmo perante as sucessivas rasteiras e contra-rasteiras que caracterizavam o combate político na altura, penso que apesar de tudo as pessoas ainda acreditavam que era possível mudar o mundo e sobretudo tinham muito mais respeito pelos políticos do que aquele que existe actualmente.
Hoje em dia, a partir do que li e sobretudo do que ouvi em conversas com várias pessoas, tenho uma opinião completamente diferente sobre Sá Carneiro, que considero ter sido um democrata e principalmente um homem com uma enorme visão política. Continuo a não gostar de Mário Soares e Álvaro Cunhal e Ramalho Eanes pertencem ao rol de personalidades pelas quais tenho algum respeito, mas não qualquer reverência ideológica.
As pessoas mudam, os conceitos mudam e a sociedade evolui. Mas o 25 de Abril está lá, estático, em 1974. Para nos recordar que, se um dia voltar a ser preciso, já sabemos que a revolução é possível.
Na véspera do 25 de Abril o tema da liberdade, da revolução e das convicções políticas é provavelmente o mais óbvio e sobretudo o mais inevitável.
Eu nasci em 1975, ou seja, no ano seguinte à revolução e já depois do célebre "verão quente de 75". O que quer dizer que cresci e vivi sempre em liberdade e numa época em que não existiram conflitos significativos em Portugal. Vivi sempre num tempo de democracia tranquila, embora com a memória da revolução e do regime que a antecedeu bem presente.
Pertenço a uma geração que olha para Abril e para a ditadura como partes da história que não se aprenderam apenas nos livros, mas principalmente a partir de conversas que ao longo de toda a vida tivemos com familiares, amigos e conhecidos. Muito provavelmente, todos temos uma visão distorcida do que verdadeiramente se passou há 31 anos, pois em relação a este tema, e por maior que seja o esforço em contrário, a verdade é que ninguém pode dizer que seja isento. Pela simples razão de que não existem pessoas completamente assépticas e sem sentimentos ou simpatias, e também porque todos os que viveram a história na primeira pessoa têm, antes de tudo o mais, uma visão essencialmente pessoal dos acontecimentos. É a própria natureza humana que faz com que as coisas assim sejam. É provavelmente ainda demasiado cedo para alguém poder contar verdadeiramente a história de Abril e não será ainda esta geração que recebeu a história em segunda mão, e à qual eu claramente pertenço, que terá o distanciamento e clarividência suficientes para avaliar com independência o que aconteceu em Abril de 74.
O conceito duma revolução em que o povo sai para a rua e faz cair pacificamente um regime, com as armas enfeitadas com cravos e não com balas é profundamente romântico e a sua importância vai muito além do simples e tecnocrático rigor histórico.
Abril para mim é muito mais um estado de espírito que propriamente uma data histórica. O 25 de Abril significa uma momento para começar de novo, para reconstruir a sociedade, para tentar melhorar o mundo, para romper barreiras. Enfim, é fundamentalmente uma oportunidade para sonhar e acreditar. É uma das datas mais positivistas que temos no nosso calendário e serve para todas as ideologias democráticas. Todos os que se movem por convicções genuínas têm em Abril uma referência obrigatória. Porque no dia 25 de Abril de 1974 as pessoas começaram a acreditar que tudo era possível.
O 25 de Abril é de todos e é principalmente uma data em que a tolerância e a convivência democrática deveriam ser valorizadas. Porque foi precisamente contra a ausência destes valores que se ergueu a revolução, independentemente do que possa ter acontecido depois.
É por isto que de vez em quando me irrito com a relação que alguns partidos e personalidades políticas têm com o 25 de Abril. Alguns sectores da esquerda consideram-se donos da revolução e algumas pessoas da direita tentam subverter ou condicionar o espírito de Abril. Foi assim há um ano com Nuno Morais Sarmento, que protagonizou o célebre episódio do "Abril é evolução" e é quase sempre assim quando políticos e partidos de esquerda se sentem desesperados. Ainda hoje acredito que Santana Lopes ganhou a Câmara de Lisboa a João Soares principalmente devido à forma bacoca como este decidiu orientar a sua campanha em torno dos valores do 25 de Abril, apresentando Santana como um símbolo do antigo regime.
Talvez para a geração dos que viveram sempre em liberdade seja mais fácil perceber a evolução da sociedade do pós-Abril. Em Portugal passámos dum período, no fim da década de 70 e início dos anos 80, em que os partidos mais à direita se intitulavam "centristas", para o que temos hoje, em que os partidos se distribuem de uma forma mais homogénea pelo espectro ideológico. Esta evolução da sociedade não tem nada a ver com o que aconteceu no 25 de Abril. Abril foi revolução. A evolução veio a seguir.
Em Abril gosto de recordar alguns episódios para os quais hoje olho com um sorriso nos lábios, mas que me marcaram e de certa forma representam o modo como os conceitos e ideologias evoluíram no nosso país.
Para mim, tudo começou em 1975. Nasci numa família esquerdista e que não gostava do antigo regime. Lembro-me de ser muito pequeno e ver o mundo a preto e branco: havia os bons (que eram os comunistas e, moderadamente, os outros partidos de esquerda) e os maus, mais concretamente todos os partidos à direita do lado esquerdo do PS. Álvaro Cunhal era para mim um velhinho simpático e bondoso, Mário Soares um vendido à direita e Sá Carneiro a personificação do mal. Freitas do Amaral era encarado apenas um lacaio daquele a quem eu chamava "o carneirão". Também gostava de Ramalho Eanes, pois achava-o um homem sério e que estava sempre a tramar o PPD. Lembro-me de um dia em que, tinha eu cerca de 5 anos, fugi da loja dos meus avós maternos e andei pelas ruas de Canelas a recolher panfletos de propaganda da AD. Juntei uma quantidade enorme e rasguei-os em mil pedacinhos, um a um, até os pedaços ficarem tão pequeninos que era quase impossível voltar a rasgá-los. Quando os meus pais chegaram a casa e viram a montanha de papéis que eu tinha acabado de produzir ralharam-me severamente, explicaram-me que destruir propaganda eleitoral era crime e proibiram-me de voltar a cometer tal acto. Senti-me injustiçado e achei-os uns frouxos. A cara rasgada de Sá Carneiro era para mim um símbolo de triunfalismo. Sinceramente, nesse dia (e apesar do castigo) senti-me um herói.
Também me recordo do dia em que morreu Sá Carneiro e sobretudo do seu funeral. Foi muito provavelmente o momento do meu primeiro choque com o outro lado da realidade. A RTP transmitiu o funeral em directo e eu fiquei profundamente impressionado quer com a multidão presente, quer com os slogans laudatórios gritados quase em uníssono. Ainda hoje me lembro de ouvir ecoar a frase mil vezes repetida "Carneiro, amigo, o povo está contigo", que na altura me deixou absolutamente surpreendido. Lembro-me perfeitamente de ter perguntado aos meus pais: se Sá Carneiro era tão mau como eles me diziam, como é que havia tanta gente a gostar dele? Sinceramente já não sei qual foi a resposta que me deram.
Estávamos nos primeiros anos da democracia e numa sociedade muito mais politizada que a actual. Não havia governos que durassem até ao fim das legislaturas, mas apesar de tudo tenho a sensação que Portugal vivia ainda a fase do sonho. Mesmo perante as sucessivas rasteiras e contra-rasteiras que caracterizavam o combate político na altura, penso que apesar de tudo as pessoas ainda acreditavam que era possível mudar o mundo e sobretudo tinham muito mais respeito pelos políticos do que aquele que existe actualmente.
Hoje em dia, a partir do que li e sobretudo do que ouvi em conversas com várias pessoas, tenho uma opinião completamente diferente sobre Sá Carneiro, que considero ter sido um democrata e principalmente um homem com uma enorme visão política. Continuo a não gostar de Mário Soares e Álvaro Cunhal e Ramalho Eanes pertencem ao rol de personalidades pelas quais tenho algum respeito, mas não qualquer reverência ideológica.
As pessoas mudam, os conceitos mudam e a sociedade evolui. Mas o 25 de Abril está lá, estático, em 1974. Para nos recordar que, se um dia voltar a ser preciso, já sabemos que a revolução é possível.
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