terça-feira, outubro 18, 2005
Cá fica um texto escrito há já alguns dias para o Jornal da Ria...
Uma Digestão Difícil
Tudo começou em 2001. Guterres abandonara o cargo de Primeiro-Ministro há poucas semanas e estava-se no período de campanha eleitoral. Ferro Rodrigues, com popularidade crescente, enfrentava Durão Barroso, líder do PSD há três anos mas a enfrentar um progressivo declínio de popularidade. No entanto, as sondagens continuavam a dar a vitória ao PSD, embora por diferenças progressivamente mais pequenas. Perante a aparente inevitabilidade da derrota, o PS decide apostar forte na boa impressão que Ferro Rodrigues havia deixado enquanto ministro da área social.
Foi então que surgiu a ideia, segundo rezam as crónicas depois de uma boa almoçarada: Ferro Rodrigues lança a proposta de criação das famosas "farmácias sociais" para o meio dos soundbytes da campanha eleitoral. O conceito em si não tinha grande lógica sob o ponto de vista técnico, pois as novas farmácias não iriam fazer nada que as outras já não fizessem ou pudessem vir a fazer, para além do facto da criação destas farmácias não ser direccionada para os locais com maiores problemas de acesso ao medicamento, mas apenas para os sítios onde existiam Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). Tratava-se de uma proposta cuja única utilidade prática era a injecção de fundos nas Misericórdias, criando condições de desigualdade fiscal com as outras farmácias, que naturalmente não beneficiam das mesmas vantagens fiscais de que as IPSS usufruem.
Foi aqui que João Cordeiro, o presidente da Associação Nacional das Farmácias (ANF) decidiu intervir. E quando o fez, cometeu provavelmente o maior erro da sua muitíssimo bem sucedida vida profissional. A ANF fez distribuir milhares de panfletos pelas mais de duas mil farmácias suas associadas, nos quais se desmontava e ridicularizava a ideia das "farmácias sociais". No entanto, o tiro acabaria por sair pela culatra: Ferro Rodrigues aproveitou o ataque da ANF para se vitimizar e capitalizar a seu favor a imagem de lutador contra os "interesses de grupos de pressão" e Correia de Campos, académico brilhante, Ministro da Saúde em exercício e o verdadeiro autor da ideia, não perdoou a humilhação intelectual infligida pela organizada e muitíssimo bem preparada máquina da ANF.
Chegaram as eleições, os resultados foram os que se conhecem, mas ficou o ressentimento. No seu livro "Confissões Políticas da Saúde", Correia de Campos deixa antever que um dia chegaria a hora da vingança.
E, de facto, o dia chegou. José Sócrates ganhou as eleições, Correia de Campos regressou ao cargo de Ministro da Saúde e o processo de ajuste de contas com a ANF começou logo no próprio dia em que o governo tomou posse: embora a ideia não fizesse parte do programa eleitoral do PS, Sócrates decidiu apresentar como prioridade do exercício governativo a venda de medicamentos não sujeitos a receita médica fora das farmácias, como forma de melhorar a acessibilidade ao medicamento. Mais uma vez, a medida era tecnicamente errada: não era claro que este fosse um dos principais problemas da Saúde em Portugal (os medicamentos existiam ao mesmo preço em todo o país, do litoral ao interior e a distribuição de uma farmácia por cada 4.000 habitantes até estava acima da média europeia) e, mesmo que o fosse, seria aparentemente mais lógico alargar o horário das farmácias ou aumentar o número de farmácias existentes (lançando mais concursos públicos para abertura de farmácias ou até liberalizando a sua instalação). Para além disso, nos países em que os medicamentos se vendem fora das farmácias tem-se assistido a um movimento no sentido inverso, com progressivos aumentos do controlo sobre as vendas e diminuição do número de medicamentos de "venda livre".
Depois de muitos avanços e recuos e alguns episódios burlescos pelo meio, a lei publicada acabou por ser bastante diferente da lei prometida, mas Correia de Campos lá conseguiu levar por diante a sua intenção. No fim ficou-se com a sensação de que o verdadeiro objectivo do ministro não era resolver eventuais problemas de acessibilidade, mas sobretudo abrir o caminho do medicamento às redes de distribuição tradicionais, que sem este preâmbulo de liberalização seriam trituradas por outros actores muito mais conhecedores do mercado, como algumas multinacionais ou a própria ANF.
Correia de Campos avançou ainda com mais duas medidas, desta vez para "ajudar a resolver o problema das contas públicas". A primeira foi reduzir 6% ao preço de venda ao público dos medicamentos (com uma curiosa excepção de última hora para os laboratórios que investem mais de 5 milhões de euros por ano em investigação e desenvolvimento…), retirando esse valor à margem das farmácias, armazenistas e indústria farmacêutica. No entanto, esta medida, embora aceitável e positiva, acaba por ser também injusta: a margem de lucro das farmácias e armazenistas portugueses é das mais baixas da Europa, enquanto que o elevado preço que os medicamentos têm entre nós (há medicamentos que chegam a ser quase 50% mais caros em Portugal que em Espanha…) se deve exclusivamente à actuação da indústria farmacêutica e da forma como esta tem tirado partido de uma alteração legislativa introduzida… por Correia de Campos, em 2001!!!
No entanto, e como não há bela sem senão, o Ministro da Saúde acabou também com o acréscimo de comparticipação de que antes beneficiavam os medicamentos genéricos. Assim, embora o preço destes medicamentos tenha baixado 6%, a percentagem que é paga directamente pelos doentes aumentou 10% (esta alteração afecta também os preços de referência a partir dos quais se calcula a comparticipação de grande parte dos medicamentos). E as farmácias não os podem devolver para actualização de preços (os medicamentos devem ser escoados normalmente e só poderão ser devolvidos no fim do seu prazo de validade, que em alguns casos chega a ser em 2011…). Com estas alterações, há medicamentos cujo preço aumentou cerca de 40% na parte que é paga directamente pelos doentes…! Além disso, passaram a existir genéricos mais caros que alguns medicamentos de marca e medicamentos com preços variáveis de farmácia para farmácia. O caos instalou-se no sector farmacêutico. Correia de Campos reconhece os desequilíbrios por si criados, mas defende-se dizendo que são uma forma de tentar "induzir o mercado a baixar o preço dos genéricos". Todos os que trabalham na área da Saúde sabem que na prática isso não irá acontecer…
Percebe-se perfeitamente que Correia de Campos vai liberalizar a instalação de farmácias logo que algumas empresas de distribuição se instalem no mercado. Quanto ao abaixamento de preços, será previsivelmente "engolido" algures entre as excepções à lei e a tradicional imaginação da indústria farmacêutica. As tais "farmácias sociais" ficaram-se pela digestão da almoçarada e os doentes, esses vão continuar a financiar tudo isto. Entretanto, o Serviço Nacional de Saúde vai agravando as suas deficiências, enquanto quem o deveria estar a dirigir perde tempo com pequenas vinganças pessoais sem quaisquer benefícios para a população. É esta a política do medicamento em Portugal!
Uma Digestão Difícil
Tudo começou em 2001. Guterres abandonara o cargo de Primeiro-Ministro há poucas semanas e estava-se no período de campanha eleitoral. Ferro Rodrigues, com popularidade crescente, enfrentava Durão Barroso, líder do PSD há três anos mas a enfrentar um progressivo declínio de popularidade. No entanto, as sondagens continuavam a dar a vitória ao PSD, embora por diferenças progressivamente mais pequenas. Perante a aparente inevitabilidade da derrota, o PS decide apostar forte na boa impressão que Ferro Rodrigues havia deixado enquanto ministro da área social.
Foi então que surgiu a ideia, segundo rezam as crónicas depois de uma boa almoçarada: Ferro Rodrigues lança a proposta de criação das famosas "farmácias sociais" para o meio dos soundbytes da campanha eleitoral. O conceito em si não tinha grande lógica sob o ponto de vista técnico, pois as novas farmácias não iriam fazer nada que as outras já não fizessem ou pudessem vir a fazer, para além do facto da criação destas farmácias não ser direccionada para os locais com maiores problemas de acesso ao medicamento, mas apenas para os sítios onde existiam Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). Tratava-se de uma proposta cuja única utilidade prática era a injecção de fundos nas Misericórdias, criando condições de desigualdade fiscal com as outras farmácias, que naturalmente não beneficiam das mesmas vantagens fiscais de que as IPSS usufruem.
Foi aqui que João Cordeiro, o presidente da Associação Nacional das Farmácias (ANF) decidiu intervir. E quando o fez, cometeu provavelmente o maior erro da sua muitíssimo bem sucedida vida profissional. A ANF fez distribuir milhares de panfletos pelas mais de duas mil farmácias suas associadas, nos quais se desmontava e ridicularizava a ideia das "farmácias sociais". No entanto, o tiro acabaria por sair pela culatra: Ferro Rodrigues aproveitou o ataque da ANF para se vitimizar e capitalizar a seu favor a imagem de lutador contra os "interesses de grupos de pressão" e Correia de Campos, académico brilhante, Ministro da Saúde em exercício e o verdadeiro autor da ideia, não perdoou a humilhação intelectual infligida pela organizada e muitíssimo bem preparada máquina da ANF.
Chegaram as eleições, os resultados foram os que se conhecem, mas ficou o ressentimento. No seu livro "Confissões Políticas da Saúde", Correia de Campos deixa antever que um dia chegaria a hora da vingança.
E, de facto, o dia chegou. José Sócrates ganhou as eleições, Correia de Campos regressou ao cargo de Ministro da Saúde e o processo de ajuste de contas com a ANF começou logo no próprio dia em que o governo tomou posse: embora a ideia não fizesse parte do programa eleitoral do PS, Sócrates decidiu apresentar como prioridade do exercício governativo a venda de medicamentos não sujeitos a receita médica fora das farmácias, como forma de melhorar a acessibilidade ao medicamento. Mais uma vez, a medida era tecnicamente errada: não era claro que este fosse um dos principais problemas da Saúde em Portugal (os medicamentos existiam ao mesmo preço em todo o país, do litoral ao interior e a distribuição de uma farmácia por cada 4.000 habitantes até estava acima da média europeia) e, mesmo que o fosse, seria aparentemente mais lógico alargar o horário das farmácias ou aumentar o número de farmácias existentes (lançando mais concursos públicos para abertura de farmácias ou até liberalizando a sua instalação). Para além disso, nos países em que os medicamentos se vendem fora das farmácias tem-se assistido a um movimento no sentido inverso, com progressivos aumentos do controlo sobre as vendas e diminuição do número de medicamentos de "venda livre".
Depois de muitos avanços e recuos e alguns episódios burlescos pelo meio, a lei publicada acabou por ser bastante diferente da lei prometida, mas Correia de Campos lá conseguiu levar por diante a sua intenção. No fim ficou-se com a sensação de que o verdadeiro objectivo do ministro não era resolver eventuais problemas de acessibilidade, mas sobretudo abrir o caminho do medicamento às redes de distribuição tradicionais, que sem este preâmbulo de liberalização seriam trituradas por outros actores muito mais conhecedores do mercado, como algumas multinacionais ou a própria ANF.
Correia de Campos avançou ainda com mais duas medidas, desta vez para "ajudar a resolver o problema das contas públicas". A primeira foi reduzir 6% ao preço de venda ao público dos medicamentos (com uma curiosa excepção de última hora para os laboratórios que investem mais de 5 milhões de euros por ano em investigação e desenvolvimento…), retirando esse valor à margem das farmácias, armazenistas e indústria farmacêutica. No entanto, esta medida, embora aceitável e positiva, acaba por ser também injusta: a margem de lucro das farmácias e armazenistas portugueses é das mais baixas da Europa, enquanto que o elevado preço que os medicamentos têm entre nós (há medicamentos que chegam a ser quase 50% mais caros em Portugal que em Espanha…) se deve exclusivamente à actuação da indústria farmacêutica e da forma como esta tem tirado partido de uma alteração legislativa introduzida… por Correia de Campos, em 2001!!!
No entanto, e como não há bela sem senão, o Ministro da Saúde acabou também com o acréscimo de comparticipação de que antes beneficiavam os medicamentos genéricos. Assim, embora o preço destes medicamentos tenha baixado 6%, a percentagem que é paga directamente pelos doentes aumentou 10% (esta alteração afecta também os preços de referência a partir dos quais se calcula a comparticipação de grande parte dos medicamentos). E as farmácias não os podem devolver para actualização de preços (os medicamentos devem ser escoados normalmente e só poderão ser devolvidos no fim do seu prazo de validade, que em alguns casos chega a ser em 2011…). Com estas alterações, há medicamentos cujo preço aumentou cerca de 40% na parte que é paga directamente pelos doentes…! Além disso, passaram a existir genéricos mais caros que alguns medicamentos de marca e medicamentos com preços variáveis de farmácia para farmácia. O caos instalou-se no sector farmacêutico. Correia de Campos reconhece os desequilíbrios por si criados, mas defende-se dizendo que são uma forma de tentar "induzir o mercado a baixar o preço dos genéricos". Todos os que trabalham na área da Saúde sabem que na prática isso não irá acontecer…
Percebe-se perfeitamente que Correia de Campos vai liberalizar a instalação de farmácias logo que algumas empresas de distribuição se instalem no mercado. Quanto ao abaixamento de preços, será previsivelmente "engolido" algures entre as excepções à lei e a tradicional imaginação da indústria farmacêutica. As tais "farmácias sociais" ficaram-se pela digestão da almoçarada e os doentes, esses vão continuar a financiar tudo isto. Entretanto, o Serviço Nacional de Saúde vai agravando as suas deficiências, enquanto quem o deveria estar a dirigir perde tempo com pequenas vinganças pessoais sem quaisquer benefícios para a população. É esta a política do medicamento em Portugal!
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