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quinta-feira, dezembro 17, 2009

A gestão mediática dos problemas do sector da Saúde faz com que frequentemente se atinjam cenários de paranóia colectiva (como no caso da gripe A) ou, no extremo oposto, situações em que todos se juntam para fechar os olhos com muita força (como se isso fizesse desaparecer os problemas) como sucedeu no caso da cegueira do Santa Maria.
Ávido por sangue de alguém que se veja, o sistema mediático prepara-se para encolher os ombros e seguir em frente agora que se identificaram os alvos sobre os quais vão recair as culpas: dificilmente o farmacêutico de 30 anos ou a técnica de 24 terão cabedal para sustentar notícias interessantes, para além das prováveis entrevistas do 24 Horas às sempre providenciais vizinhas e tias que farão as inevitáveis juras de que ambos sempre foram bons alunos com personalidades certinhas e que as respectivas famílias estão de rastos.
Mas vamos por partes - é mais ou menos óbvio desde o primeiro dia que a culpa não seria do Avastin, cuja utilização naquelas condições, embora off-label, é prática clínica generalizada um pouco por todo o mundo. Sendo assim, haveria três hipóteses: o erro médico (pouco provável, porque a intervenção clínica em circunstâncias como esta está normalmente sujeita a um escrutínio mais sólido pela parte dos pares - só excepcionalmente um médico faria um procedimento deste género "a solo" ou sem a "rede" proporcionada pela presença de outros colegas, mais ou menos graduados), um erro relacionado com procedimentos de esterilização (rapidamente excluído quando se percebeu a natureza não infecciosa do problema) ou o erro farmacêutico (mais provável, dado o carácter forte, esporádico e claramente atípico da reacção ocorrida).
Foi por isso com um arrepio na espinha que li as primeiras reacções da Ordem dos Farmacêuticos ao acontecimento, que pela voz da então vice-presidente (e bastonária em exercício) e de outros elementos da direcção proferiu um conjunto de declarações tecnicamente insensatas, primariamente corporativistas e que envergonham toda uma classe profissional.
Continua a parecer muitíssimo estranho que um anticorpo monoclonal como o Bevacizumab (o Avastin) possa, numa farmácia hospitalar, ser trocado com um citostático (que, segundo a imprensa, é o que estaria no frasco rotulado como "Avastin").
Trata-se de medicamentos que habitualmente circulam segundo circuitos completamente diferentes, que têm especificações de manipulação distintas e por isso afigura-se como insólito que pudessem estar os dois frascos lado a lado em cima da mesma banca, como há dias noticiava uma televisão (não me recordo qual).
Por outro lado, na estrutura de funcionamento de uma farmácia hospitalar há sistemas de verificação e reverificação constantes, com as intervenções a serem validadas sequencialmente por vários operadores (por vezes 4 pessoas para um único aviamento), procedimentos feitos com o sistema de "testemunha" (uma pessoa a fazer e outra a ver) e toda uma estrutura administrativa (habitualmente assente num sistema de gestão da qualidade) que fazem com que este tipo de erro grosseiro possa ser, se não impossível, pelo menos muito pouco provável.
Como não conheço os serviços farmacêuticos do HSM nem o farmacêutico envolvido, não me posso pronunciar sobre o que se passou. É no entanto muito estranho que no final das contas a culpa (mediática, não necessariamente jurídica) seja apenas de duas pessoas, ao que parece, peixes menores da cadeia alimentar do maior hospital do país. Em primeiro lugar, porque a haver culpados não seriam só dois - numa farmácia hospitalar que se prezasse, o circuito daquele medicamento teria passado por vários outros profissionais, cabendo a validação final a farmacêuticos mais graduados e em segundo lugar porque não se ouvem referências à necessidade de lançar a discussão pública sobre o modo e as circunstâncias em que funcionam as farmácias hospitalares portuguesas. De facto, nos últimos anos a utilização de medicamentos em meio hospitalar tem sido abordada de uma forma gestionária e economicocêntrica. Os farmacêuticos hospitalares são (des)considerados como engulhos a um processo determinado essencialmente por critérios económicos e médicos, desperdiçando-se as respectivas competências nas áreas farmacoterapêuticas e do conhecimento farmacodinâmico e farmacocinético. Esta cultura errada tem um efeito paradoxalmente oposto, pois a pouco eficaz utilização dos medicamentos hospitalares tem um custo económico significativo, certamente muito maior que os ganhos eventualmente proporcionados pelas micropoupanças conseguidas pelos licenciados em sociologia que cortam as unhas rentes e pululam pelas administrações dos hospitais. No entanto, o que é verdadeiramente grave são as tragédias humanas provocadas pelo desinvestimento nesta área - se se provar que o HSM, o maior hospital do país, não tem um bom serviço de farmácia hospitalar, de quem é a culpa? Se isto for verdade, quem deveria estar no banco dos réus? Os anónimos e possivelmente precários funcionários de 30 e 24 anos que trabalham no HSM entre dois recibos verdes ou os administradores hospitalares que acham que a farmácia hospitalar não serve para nada?

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