sexta-feira, junho 08, 2012
Aqui fica o texto da crónica que hoje está a ser transmitida pela Rádio Voz da Ria. Já foi escrito e gravado há algum tempo, mas creio que o distanciamento até ajuda a manter a perspectiva...
Em tempos
de crise os actos de desespero são mais frequentes, aparecem de
todos os lados e surpreendem-nos quer pela intensidade, quer pela forma nua,
crua e despudorada com que se apresentam.
Nas últimas semanas o país assistiu repugnado à exibição de um dos mais vergonhosos
anúncios publicitários de sempre. A Crioestaminal decidiu promover a venda de
criopreservações de células estaminais embrionárias através de um anúncio que foi longe de mais em
todos os aspectos imagináveis: porque anunciava falsos
milagres, porque apresentava dados cientificamente incorrectos como se fossem
um dado adquirido e sobretudo porque era dirigido à consciência dos pais, chantageando-os
e induzindo sentimentos de culpa relativamente à saúde dos filhos, criando um cenário em que uma criança com uma doença oncológica não poderia ser salva por culpa
dos pais.
Com este
lamentável episódio ultrapassou-se um limite. Por muito desesperada que
esteja a Crioestaminal, na vida não pode valer tudo. Não há qualquer paternalismo em
dizer que devemos ser decentes e saber conviver uns com os outros. Até porque a Crioestaminal sabe que pode enganar alguns
durante algum tempo, mas não é possível enganar todos durante todo
o tempo.
Esta história tem, no entanto, um lado positivo: a consciência e inteligência colectivas da sociedade
funcionaram e criou-se uma onda de protestos que levou à retirada do vergonhoso filme publicitário.
A
Crioestaminal tem agora uma imagem para reconstruir, vai perder quota de
mercado e quase desencadeou um movimento legislativo e social que impedisse a
sua actividade. Em muitos países desenvolvidos é proibida a auto-preservação das células estaminais embrionárias - e nesta onda de reacções muitos questionaram porque é que em Portugal as coisas hão-de ser diferentes, sobretudo
quando este tipo de cenário legislativo faz surgir uma
concorrência tão dura, que acaba por ter consequências negativas para o resto da sociedade. Não precisamos deste tipo de empresas e muito menos de
marketeers sem imaginação e que apenas actuam na lógica da agressão.
Bater nos
outros é feio, sobretudo quando
falamos de crianças e tratamentos oncológicos. Que tipo de
pessoa é capaz de uma coisa destas?
Num país sem crise este anúncio não existiria. Nem num país decente e com níveis de civismo normais. Isto não foi só má publicidade: foi também má formação moral e sobretudo má educação. Faltou dignidade à Crioestaminal e felizmente para a nossa sociedade que nem
todas as empresas e pessoas reagem assim à crise.
Criopreservar
células estaminais é um acto de fé em eventuais avanços futuros da ciência, pois à luz do conhecimento científico actual faz pouco sentido. Pessoalmente, sou um
humanista e acredito na capacidade humana e em avanços futuros da ciência. Desde pequenino que leio
livros de ficção científica e por isso acredito que um dia aquelas células poderão ser úteis. Nesse sentido, acho bem que se preservem. Se isso
vale 800 euros? Não sei. Mas por segurança prefiro não os dar a terroristas
emocionais.
Comments:
Muito bem! Não se pode pactuar com esta disseminação de informação sem evidência científica sólida.
Mas... e então os reclames de produtos que descaradamente garantem que quem os toma irá emagrecer em 3 semanas?
E os produtos com nome de doença que garantem ter "ampla acção anti-fúngica, antiséptico, germicida, bactericida, fungicida e virucida"?
Não estão também eles a induzir o consumidor em erro fazendo reivindicações infundadas?
Pode-se inclusivamente ir mais longe: a emissão de cerimónias religiosas na televisão e a propaganda da IURD que há tempos, sem crise, também rodava? Claramente dirigido à consciência das pessoas da forma mais baixa possível: afirmando que quem não os aceitar irá sofrer eternamente num sítio chamado inferno?
Não deviam também estes exortar a consciência colectiva e desencadear movimentos sociais?
Mas... e então os reclames de produtos que descaradamente garantem que quem os toma irá emagrecer em 3 semanas?
E os produtos com nome de doença que garantem ter "ampla acção anti-fúngica, antiséptico, germicida, bactericida, fungicida e virucida"?
Não estão também eles a induzir o consumidor em erro fazendo reivindicações infundadas?
Pode-se inclusivamente ir mais longe: a emissão de cerimónias religiosas na televisão e a propaganda da IURD que há tempos, sem crise, também rodava? Claramente dirigido à consciência das pessoas da forma mais baixa possível: afirmando que quem não os aceitar irá sofrer eternamente num sítio chamado inferno?
Não deviam também estes exortar a consciência colectiva e desencadear movimentos sociais?
Bem esgalhado, Azrael... Mas ainda assim acho que há um nível de visco abaixo do qual a Crioestaminal desceu e os outros não...
Talvez sim, mas eu diria que foi apenas porque mexeu com as emoções mais viscerais e poderosas: o amor pelos filhos. A evidência e veracidade das afirmações (ou falta dela) é comparável entre esses anúncios todos. Talvez a da crioestaminal até seja mais plausível do que o resto.
Curiosamente, estou certo de que o objectivo do marketeer por detrás do anúncio foi esse mesmo, despertar emoções. Nunca deve é ter contado que essas emoções fossem tão fortes :)
Enviar um comentário
Curiosamente, estou certo de que o objectivo do marketeer por detrás do anúncio foi esse mesmo, despertar emoções. Nunca deve é ter contado que essas emoções fossem tão fortes :)