sexta-feira, julho 27, 2012
Portugal ainda é fixe
Encontrei há dias, no fundo do meu directório de podcasts, os episódios da Caderneta de Cromos de Nuno Markl (emitida na Rádio Comercial) sobre as eleições presidenciais de 86.
Além dos imensos aspectos caricaturais do referido acto eleitoral, o que mais me fez sorrir foi de facto recordar a intensidade com que as coisas foram vividas nessa época. Embora tivesse apenas 10 anos, lembro-me perfeitamente de que os adultos da família se dividiam entre os que apoiavam Salgado Zenha e os que eram adeptos de Loudes Pintasilgo, enquanto que as crianças, claramente mais visionárias e sensíveis aos apelos mediáticos, se repartiam entre Soares (como era o meu caso) e Freitas do Amaral. Na segunda volta já quase todos diziam que Soares era fixe, com excepção de um primo de 9 anos, que se mantinha irredutível no seu freitismo. Nos recreios da escola as coisas passavam-se mais ou menos da mesma forma, embora no meu caso quem não fosse do Freitas fosse olhado como um ET. Afinal, estávamos em Estarreja, em pleno início do Cavaquismo e a meio do consulado de Maria de Lurdes Breu.
Eram outros tempos, em que os principais políticos do sistema eram pessoas com elevada formação académica e, mais importante que isso, tinham uma densidade intelectual admirável, com produção de pensamento e ideias políticas concretas.
Hoje em dia não gosto nem de Freitas, nem de Soares, mas reconheço que ambos são pessoas capazes de produzir e articular ideias e que intelectualmente estão à altura dos cargos que desempenharam.
Esta introdução serve para estabelecer o contraste com a actual realidade da política portuguesa. Passámos de um modelo elitista em que só quem tivesse um determinado nível de pensamento organizado é que tinha possibilidades de chegar aos cargos mais elevados, para o actual sistema, em que os políticos de carreira são pessoas que ascendem à custa de jogos de influência intra-partidária (o que até poderia nem ser necessariamente mau) e que de um modo geral não têm qualquer capacidade de produzir ideias, livros, textos ou até simples declarações de carácter mais ideológico ou pelo menos não apenas elementarmente utilitário.
Veja-se o caso concreto e recente do PS no distrito de Aveiro: há poucas semanas a distrital de Aveiro do PS reelegeu, com 65% dos votos, um presidente que é deputado desde os 27 anos (hoje tem 35) e cuja única ideia política considerada relevante pela Wikipédia ou pelos principais blogs políticos foi uma frase proferida em Dezembro de 2011 em que este se dizia estar a "marimbar" para o acordo que o seu próprio partido (pelo qual havia sido duas vezes eleito deputado) assinara cerca de 6 meses antes, assinalando ainda que este marimbanço faria tremer as pernas dos banqueiros alemães.
Ou seja, não nos podemos continuar a chocar com casos como os de Sócrates ou Relvas. Esta é a realidade actual dos nossos principais partidos, cujos futuros líderes e ministros são gente que entra desta forma no sistema, que tem este tipo de actuação pública e que ainda por cima é premiada internamente com vitórias esmagadoras. Resta-nos a consolação de Pirro: a candidatura em causa perdeu na secção de Estarreja, tendo apenas 16% dos votos contra 84% da lista adversária.
Felizmente, vai sempre havendo alguém que resite. Para a Frente, Portugal, que és um país bem fixe!
(texto da crónica de hoje na RVR)
Além dos imensos aspectos caricaturais do referido acto eleitoral, o que mais me fez sorrir foi de facto recordar a intensidade com que as coisas foram vividas nessa época. Embora tivesse apenas 10 anos, lembro-me perfeitamente de que os adultos da família se dividiam entre os que apoiavam Salgado Zenha e os que eram adeptos de Loudes Pintasilgo, enquanto que as crianças, claramente mais visionárias e sensíveis aos apelos mediáticos, se repartiam entre Soares (como era o meu caso) e Freitas do Amaral. Na segunda volta já quase todos diziam que Soares era fixe, com excepção de um primo de 9 anos, que se mantinha irredutível no seu freitismo. Nos recreios da escola as coisas passavam-se mais ou menos da mesma forma, embora no meu caso quem não fosse do Freitas fosse olhado como um ET. Afinal, estávamos em Estarreja, em pleno início do Cavaquismo e a meio do consulado de Maria de Lurdes Breu.
Eram outros tempos, em que os principais políticos do sistema eram pessoas com elevada formação académica e, mais importante que isso, tinham uma densidade intelectual admirável, com produção de pensamento e ideias políticas concretas.
Hoje em dia não gosto nem de Freitas, nem de Soares, mas reconheço que ambos são pessoas capazes de produzir e articular ideias e que intelectualmente estão à altura dos cargos que desempenharam.
Esta introdução serve para estabelecer o contraste com a actual realidade da política portuguesa. Passámos de um modelo elitista em que só quem tivesse um determinado nível de pensamento organizado é que tinha possibilidades de chegar aos cargos mais elevados, para o actual sistema, em que os políticos de carreira são pessoas que ascendem à custa de jogos de influência intra-partidária (o que até poderia nem ser necessariamente mau) e que de um modo geral não têm qualquer capacidade de produzir ideias, livros, textos ou até simples declarações de carácter mais ideológico ou pelo menos não apenas elementarmente utilitário.
Veja-se o caso concreto e recente do PS no distrito de Aveiro: há poucas semanas a distrital de Aveiro do PS reelegeu, com 65% dos votos, um presidente que é deputado desde os 27 anos (hoje tem 35) e cuja única ideia política considerada relevante pela Wikipédia ou pelos principais blogs políticos foi uma frase proferida em Dezembro de 2011 em que este se dizia estar a "marimbar" para o acordo que o seu próprio partido (pelo qual havia sido duas vezes eleito deputado) assinara cerca de 6 meses antes, assinalando ainda que este marimbanço faria tremer as pernas dos banqueiros alemães.
Ou seja, não nos podemos continuar a chocar com casos como os de Sócrates ou Relvas. Esta é a realidade actual dos nossos principais partidos, cujos futuros líderes e ministros são gente que entra desta forma no sistema, que tem este tipo de actuação pública e que ainda por cima é premiada internamente com vitórias esmagadoras. Resta-nos a consolação de Pirro: a candidatura em causa perdeu na secção de Estarreja, tendo apenas 16% dos votos contra 84% da lista adversária.
Felizmente, vai sempre havendo alguém que resite. Para a Frente, Portugal, que és um país bem fixe!
(texto da crónica de hoje na RVR)
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