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quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Quem Mexeu no Meu Queijo?

Seguramente que mesmo os que não leram o livro de Spencer Johnson sairam ontem à noite do Hotel D. Luís (em Coimbra) a pensar no seu conteúdo e na mensagem subjacente à respectiva história.
Mas comecemos por partes: decorreu na noite passada mais uma das sessões de debate promovidas pela Secção Regional de Coimbra (SRC) da Ordem dos Farmacêuticos (OF) sobre o futuro e as novas realidades da profissão. É notável a pujança da SRC da OF: o Prof. Batel Marques conseguiu que se reunissem (sem recorrer ao expediente dos créditos para renovação da carteira profissional!!!) mais de duzentas pessoas numa sala, unicamente para ouvir falar de ciência e debater o futuro das farmácias e dos farmacêuticos em Portugal. A sessão de ontem era sobre a realização de testes de rastreio em farmácias comunitárias, acabou já depois da meia-noite e na sala ainda estavam cerca de 130 pessoas.
O principal palestrante foi Vítor Rodrigues, epidemiologista e Prof. da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, que explicou à plateia o que são testes de rastreio e porque é que a sua realização nas farmácias só faria sentido numa perspectiva de actuação integrada dos diversos agentes do sistema de saúde e desde que exista uma racionalidade e continuidade terapêutica no processo que se inicia através de um rastreio. No "painel de reacção" estiveram Suzete Costa (coordenadora do programa de cuidados farmacêuticos da ANF), Nuno Silva (médico internista dos HUC) e Paulo João Soares (farmacêutico especialista em análises clínicas).
Percebeu-se perfeitamente que os farmacêuticos são uma classe profissional ainda em estado de choque com as novas medidas propostas para o sector, nomeadamente a evolução da farmácia enquanto local de venda de medicamentos para a farmácia "point of care", uma espécie de mini-mercado de tudo quanto soe vagamente a produto ou serviço de saúde.
Foi também evidente o embaraço da ANF nesta questão: ao contrário do que afirmou Suzete Costa, as farmácias estão efectivamente a promover processos de rastreio de doenças, embora estes sejam eufemisticamente designados por "testes de identificação de doentes". Não é o facto de se enviesar a amostra (através de inquéritos para "afunilar" o processo) que faz com que um teste deixe de se chamar "rastreio" para se poder chamar outra coisa qualquer: um rastreio é um conjunto de procedimentos (análises clínicas, exames objectivos, etc.) que é feito sobre uma amostra de doentes assintomáticos, com vista a detectar doenças numa fase precoce da sua história natural e encaminhá-los para o processo de diagnóstico. E é exactamente isso que a ANF tem promovido e pelos vistos pensa continuar a promover, apesar de todas as evidências científicas que existem em contrário (veja-se o escandaloso caso dos testes do PSA, sobre os quais em tempos escrevi).
Ao contrário do que algumas pessoas da audiência argumentaram durante o debate, este tipo de iniciativas não é neutra para o SNS: é inevitável que qualquer indivíduo que tenha um resultado positivo num destes testes "de despiste" acabe por recorrer imediatamente aos hospitais e centros de saúde públicos que o rodeiam. É uma consequência do modelo de Beveridge que felizmente ainda orienta os princípios de funcionamento do nosso SNS!
Ou seja, a realização desorganizada, esporádica e desligada de testes de rastreio pelas farmácias portuguesas tem custos para o SNS. E atrevo-me a dizer que não serão poucos! Aliás, Vítor Rodrigues foi bastante arguto no modo como demonstrou isso mesmo, ao referir vários exemplos de situações disparatadas e tragicómicas que ocorriam como consequência da generalização absurda de rastreios.
Nuno Silva frisou a perspectiva clínica da questão, explicando o facto de para os médicos este tipo de iniciativas só fazer sentido enquanto parte de um processo de acompanhamento do doente mais alargado e integrado e Paulo João Soares falou das inevitáveis limitações técnicas que decorrem do facto das farmácias claramente não serem estabelecimentos especializados na realização de análises clínicas.
Em suma, percebeu-se que os farmacêuticos actualmente não sabem muito bem o que hão-de fazer: o novo modelo de farmácia determinado pelo "Compromisso com a Saúde" (assinado entre o governo e a ANF) descentra a actividade farmacêutica e relega para segundo plano todas as actividades de cedência de medicamentos, prevenção e monitorização de interacções medicamentosas, monitorização de doses terapêuticas, identificação e prevenção de fenómenos de iatrogenia medicamentosa, farmacovigilância, aconselhamento ao doente, promoção da adesão à terapêutica, etc. As farmácias portuguesas, sob o impulso da ANF, estão a evoluir para um modelo em que os próprios farmacêuticos serão um apêndice, provavelmente minoritário, de estabelecimentos com muito mais serviços e que contribuem muito pouco para a melhoria da saúde das populações.
Tudo isto seria evitável se as farmácias encetassem um processo de reaproximação à rede de Cuidados de Saúde Primários e se fossem realizados esforços para que a actuação das farmácias decorresse em coordenação com a dos médicos e demais profissionais de saúde que integram a rede.
A Ordem dos Farmacêuticos não pode tolerar que se siga este caminho: está em causa não só a credibilidade profissional (e até a própria empregabilidade!) de um conjunto de profissionais qualificados, mas principalmente a saúde das populações.
Os programas de rastreio pelas farmácias comunitárias são tiros de pólvora seca, que trazem pouco ou nenhum benefício às populações e representam um custo escondido para o SNS. Não foi assim que as farmácias conquistaram a sua credibilidade e seguramente que não é este o caminho a seguir.
Alguém mexeu no queijo dos farmacêuticos, que agora o procuram desesperadamente em qualquer parte. No entanto, ontem à noite percebeu-se perfeitamente que não é aqui que ele está.

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