sexta-feira, setembro 30, 2011
O Peliteiro já o havia profetizado e a realidade confirmou-o. Ontem foi mesmo um dia negro para as farmácias com a publicação destas medidas. Como consequência, a Direcção da ANF demitiu-se.
Comecemos a analisar este assunto pelo seu epílogo (ou pelo último epílogo conhecido): a Direcção da ANF demitiu-se, supostamente por "não querer pactuar com esta política" e "por não ter sido ouvida".
Na verdade, o problema é bem mais complexo e grave do que à partida possa parecer - e João Cordeiro, por perceber o que se está a passar em toda a sua extensão optou pela saída dramática como forma de mostrar a indignação. Enganou-se - hoje esta notícia já nem sequer aparece na homepage da edição online dos principais jornais e a conotação negativa associada à ANF criou um sentimento geral de desvalorização do acontecimento. Já nem no Saúde SA se atiram foguetes (passaram-se 13 horas desde que o Xavier publicou a notícia e até agora não há um único comentário sobre o assunto).
Há qualquer coisa de insólito na forma como tudo isto se passou. Em primeiro lugar, e embora o detalhe da concretização das medidas não seja ainda conhecido, nada disto é novidade ou sequer inesperado - trata-se aparentemente da concretização do memorando da troika, cujas consequências já tinham sido alvo de análise neste blogue no dia 3 de Maio de 2011. Ou seja, não podemos ficar surpreendidos com aquilo de que estávamos à espera.
João Cordeiro sabia que isto iria acontecer e por isso não pode ter ficado surpreendido. Assim sendo, porquê o dramatismo da demissão? A resposta, infelizmente, é bastante mais dura que a suposta realidade - é que estas medidas simplesmente vão arrasar o sector farmacêutico e, por arrastamento, a própria ANF. Recordo o que aqui escrevi há quase 5 meses, que continuo a subscrever quase na íntegra:
A ser verdade, esta medida representa uma redução de 30% das margens das farmácias (isto depois das múltiplas reduções ocorridas nos últimos anos e da mais que previsível entrada em vigor da DCI) - em termos práticos, é o fim do modelo farmacêutico português, pois será inevitável a falência de algumas farmácias e cadeias de distribuição de medicamentos, desencadeando-se um efeito de bola de neve que desencadeará ainda mais falências (uma vez que é a distribuição quem efectivamente financia grande parte do sector).
...e digo quase apenas porque a situação entretanto piorou - a banca já não faz factoring (isso traria uma enorme exposição a um Estado de risco como neste momento é Portugal) e isso vai fazer com que a própria ANF deixe de ter meios para financiar o sector. Ou seja, é de prever que nos próximos meses ocorram seriíssimos problemas de abastecimento de medicamentos à população, quer pela falência dos distribuidores grossistas, quer das próprias farmácias.
Neste momento a liberalização total do sector é urgente, necessária e indispensável - sob pena do acesso ao medicamento descer para níveis nunca vistos em Portugal nos últimos 37 anos e surgirem assimetrias e inequidades gravíssimas.
Deixo ainda uma reflexão: será socialmente justo repartir desta forma tão assimétrica o esforço financeiro que se exige a todo o país?
Comecemos a analisar este assunto pelo seu epílogo (ou pelo último epílogo conhecido): a Direcção da ANF demitiu-se, supostamente por "não querer pactuar com esta política" e "por não ter sido ouvida".
Na verdade, o problema é bem mais complexo e grave do que à partida possa parecer - e João Cordeiro, por perceber o que se está a passar em toda a sua extensão optou pela saída dramática como forma de mostrar a indignação. Enganou-se - hoje esta notícia já nem sequer aparece na homepage da edição online dos principais jornais e a conotação negativa associada à ANF criou um sentimento geral de desvalorização do acontecimento. Já nem no Saúde SA se atiram foguetes (passaram-se 13 horas desde que o Xavier publicou a notícia e até agora não há um único comentário sobre o assunto).
Há qualquer coisa de insólito na forma como tudo isto se passou. Em primeiro lugar, e embora o detalhe da concretização das medidas não seja ainda conhecido, nada disto é novidade ou sequer inesperado - trata-se aparentemente da concretização do memorando da troika, cujas consequências já tinham sido alvo de análise neste blogue no dia 3 de Maio de 2011. Ou seja, não podemos ficar surpreendidos com aquilo de que estávamos à espera.
João Cordeiro sabia que isto iria acontecer e por isso não pode ter ficado surpreendido. Assim sendo, porquê o dramatismo da demissão? A resposta, infelizmente, é bastante mais dura que a suposta realidade - é que estas medidas simplesmente vão arrasar o sector farmacêutico e, por arrastamento, a própria ANF. Recordo o que aqui escrevi há quase 5 meses, que continuo a subscrever quase na íntegra:
A ser verdade, esta medida representa uma redução de 30% das margens das farmácias (isto depois das múltiplas reduções ocorridas nos últimos anos e da mais que previsível entrada em vigor da DCI) - em termos práticos, é o fim do modelo farmacêutico português, pois será inevitável a falência de algumas farmácias e cadeias de distribuição de medicamentos, desencadeando-se um efeito de bola de neve que desencadeará ainda mais falências (uma vez que é a distribuição quem efectivamente financia grande parte do sector).
A ANF não terá, em princípio, capacidade para assegurar muito mais
financiamento do que aquele que já está a ser garantido - e perante a
capitulação de alguns associados, os atrasos de pagamento do Estado e os
inevitáveis efeitos destes fenómenos na Alliance Healthcare, a ANF
estará igualmente exposta a um risco enorme. E se a ANF cair, cairá
também o financiamento bancário para garantir a comparticipação de
medicamentos.
Por paradoxal que pareça, só com a liberalização
da instalação de farmácias será possível assegurar a viabilidade
económica do sector... o FMI já a fez na Grécia e provavelmente vai
repetir a receita em Portugal. É absolutamente inevitável, pois só as
grandes cadeias poderão sobreviver com margens tão curtas e redes
próprias de distribuição.
Uma coisa é certa: se esta medida avançar nada ficará como antes - e
estou convencido de que no dia 3 de Maio de 2013 estarei aqui a
confirmar que em Portugal existirão 3 grandes cadeias de farmácias, que
dominarão mais de 90% do mercado. É para estes exercícios de
Zandinguismo que serve a blogosfera!
...e digo quase apenas porque a situação entretanto piorou - a banca já não faz factoring (isso traria uma enorme exposição a um Estado de risco como neste momento é Portugal) e isso vai fazer com que a própria ANF deixe de ter meios para financiar o sector. Ou seja, é de prever que nos próximos meses ocorram seriíssimos problemas de abastecimento de medicamentos à população, quer pela falência dos distribuidores grossistas, quer das próprias farmácias.
Neste momento a liberalização total do sector é urgente, necessária e indispensável - sob pena do acesso ao medicamento descer para níveis nunca vistos em Portugal nos últimos 37 anos e surgirem assimetrias e inequidades gravíssimas.
Deixo ainda uma reflexão: será socialmente justo repartir desta forma tão assimétrica o esforço financeiro que se exige a todo o país?
quinta-feira, setembro 29, 2011
Uma bomba em primeira mão no Efervescente: direcção da ANF demite-se na sequência das decisões anunciadas pelo Conselho de Ministros desta tarde. Amanhã escreverei abundantemente sobre isto (se tiver tempo, obviamente).
terça-feira, setembro 27, 2011
Tenho a maior das embirrações pessoais com o Dia do Farmacêutico, que ontem foi alvo de mais uma lamentável comemoração por parte da Ordem dos Farmacêuticos.
De facto, pior que inventar à pressão não um, mas dois padroeiros para uma profissão que nunca os teve (como aliás é bem visível pelas desgraças ocorridas nos últimos tempos), é recorrer aos serviços de
dois santos que na verdade eram essencialmente médicos/curandeiros e não farmacêuticos!
Aliás, não é por acaso que estes santos são também os padroeiros de cirurgiões, físicos, cabeleireiros e barbeiros :)), para além de serem venerados também por cultos como o Candomblé, Xambá, Xangô, etc. (mais algumas informações curiosas em http://en.wikipedia.org/wiki/Saints_Cosmas_and_Damian).
De facto, pior que inventar à pressão não um, mas dois padroeiros para uma profissão que nunca os teve (como aliás é bem visível pelas desgraças ocorridas nos últimos tempos), é recorrer aos serviços de
dois santos que na verdade eram essencialmente médicos/curandeiros e não farmacêuticos!
Aliás, não é por acaso que estes santos são também os padroeiros de cirurgiões, físicos, cabeleireiros e barbeiros :)), para além de serem venerados também por cultos como o Candomblé, Xambá, Xangô, etc. (mais algumas informações curiosas em http://en.wikipedia.org/wiki/Saints_Cosmas_and_Damian).
Como se tudo isto não bastasse, comecei o dia estarrecido com mais esta notícia:
Ordem defende conceito de farmacêutico de família
por LusaOntem
O bastonário da Ordem dos Farmacêuticos defendeu hoje, no Porto, que as farmácias devem integrar a rede nacional de cuidados de saúde primários e que deve ser criado o conceito de farmacêutico de família.
"As farmácias comunitárias portuguesas, onde cerca de oito mil farmacêuticos exercem a sua atividade profissional, são verdadeiras unidades de saúde, vocacionadas para a prestação de cuidados de saúde à população", afirmou Carlos Maurício Barbosa no âmbito das comemorações do Dia do Farmacêutico 2011, que se iniciaram dia 23 de setembro e cuja sessão solene teve lugar hoje no Palácio do Freixo, no Porto.
Para o bastonário, e "por isso mesmo", aquelas unidades "reúnem condições para integrar a rede nacional de cuidados de saúde primários", estando o país a desperdiçar o seu "elevado potencial".
Defendeu ainda fazer "todo o sentido" desenvolver o "conceito de farmacêutico de família, com funções assistenciais de proximidade".
Distinguindo a "expertise dos farmacêuticos", o bastonário salientou o seu aproveitamento para "acompanhar as terapêuticas dos doentes, em particular os crónicos".
"Estou certo que os farmacêuticos portugueses saberão responder a mais este desafio com a competência e o mérito que lhes são justamente reconhecidos. O conceito de farmacêutico clínico faz todo o sentido", frisou.
Criticando a ausência do ministro da Saúde no Dia do Enfermeiro e a falta de resposta da tutela à proposta de Normas de Orientação Terapêutica apresentada pela Ordem, Carlos Maurício Barbosa salientou que a sua implementação seria um "contributo para a racionalização da prescrição, dispensa e utilização de medicamentos em ambulatório", tendo por objetivo "responder a necessidades cada vez mais urgentes do sistema de saúde português".
O objetivo destas orientações clínicas é o de contribuir para uma melhoria do nível de saúde da população portuguesa através de normas científicas relativas à terapêutica.
"A Ordem dos Farmacêuticos tem plena consciência da difícil situação em que se encontra o país e da necessidade imperiosa do controlo efetivo da despesa do Serviço Nacional de Saúde", sublinhou durante o seu discurso.
Destacou, porém, que "nos primeiros seis meses deste ano, a despesa do Estado com medicamentos em ambulatório diminuiu cerca de 160 milhões de euros", uma tendência que, garantiu, "mantém-se".
Deixando a crítica ao mau gosto intragável comum a todos os textos escritos à luz do acordo ortográfico para outras núpcias, vale a pena conter o vómito e analisar a notícia. De facto, o Bastonário da OF promove a criação do conceito de "Farmacêutico de Família" e a sua integração na rede de CSP, não porque exista essa necessidade (que não existe), não em função de uma estratégia de colaboração e coordenação com outros profissionais (que é urgente, indispensável e necessária), mas apenas porque os farmacêuticos são um recurso intelectual desperdiçado (o que é verdade).
Ou seja, em nome do próprio umbigo, a OF defende a criação de uma figura desnecessária e que, a ser criada, seria mais uma fonte de conflitualidade no SNS e não teria qualquer possibilidade de integrar efectivamente a rede de CSP.
Pior que uma sessão de autocomiseração num período difícil para os farmacêuticos é a sua própria Ordem, em vez de remar contra a maré, perder tempo a defender publicamente ideias absurdas, inviáveis, desnecessárias e que ocupam o espaço mediático que poderia estar reservado aos projectos com interesse efectivo para o país, para os doentes, para o SNS e, naturalmente, para os próprios farmacêuticos.
A notícia tem, no entanto, dois aspectos positivos: o facto de se reconhecer e assumir implicitamente que o papel do farmacêutico na rede de CSP tem que ser repensado e a noção de que a farmácia clínica é a via para inverter o problema. Infelizmente, é pouco provável que esta conceptualização subliminar venha a servir para o que quer que seja, na medida em que duvido que o seu próprio autor a tenha compreendido plenamente...
quarta-feira, setembro 21, 2011
O Prof. Pedro Pita Barros escreveu esta interessante análise no Dinheiro Vivo e no Momentos Económicos:
Embora este texto tenha sido escrito com o brilhantismo e originalidade característicos do autor e seja uma das excepções ao vociferar clubístico que abunda na blogosfera, julgo que ainda não foi desta que se chegou ao cerne da questão madeirense.
De facto, para prevenirmos o aparecimento de novos Jardins e disciplinarmos a actividade dos que neste momento estão caladinhos a rezar para que a Troika não tropece e descubra o seu buraco (significativamente mais pequeno, esperemos!), há que primeiro compreender o que é, quem é, como funciona um governo regional de um local como a Madeira e sobretudo como é que se podem ganhar todas as eleições em quase 40 anos de relativa democracia.
Em primeiro lugar, há que relativizar o problema: embora ofensivo, gigantesco e absurdo, o buraco de AJJ (que a 21/9/2011 vai em 1,6 mil milhões) é, ainda assim, mais pequeno que outros buracos conhecidos publicamente: 3 mil milhões do Metro de Lisboa, cerca de 2 mil milhões do Metro do Porto, 2 mil milhões do BPN, 3 a 5 mil milhões de euros (conforme a fonte noticiosa) das Estradas de Portugal, fora outros clientes habituais deste tipo de estatísticas, como a Refer, Parque Escolar, CP, TAP, RTP, etc. Ou seja, a diferença (não negligenciável ou encarável levianamente) entre AJJ e estes exemplos é apenas o facto de no primeiro caso ter existido uma ocultação da gestão ruinosa do património público.
E é neste contexto que o argumento da "legítima defesa" colhe. De facto, há uma inteligência colectiva (neste caso, dos madeirenses) que faz encarar as coisas pragmaticamente: se a gestão ruinosa dos dinheiros públicos se tornou numa prática generalizada e sistémica, que razões haverá para se mudar o actor dessa gestão? Para quê mudar as moscas? Pelo menos AJJ criou 30 mil empregos directos (à custa do sector público e com os problemas enunciados por Pedro Pita Barros) e dotou a Madeira de um conjunto de infra-estruturas e instituições que a colocam num nível consideravelmente superior ao do continente. Além disso, que se saiba AJJ não tem contas na Suíça, andares luxuosos no centro de Lisboa ou outros sinais exteriores de riqueza inexplicáveis à luz dos rendimentos conhecidos. E há que reconhecer que no Continente têm existido muito mais escândalos financeiros (BPN, BPP, empresas municipais, saco azul, etc.) que na Madeira. Ou seja, a velha teoria de que "este pelo menos faz alguma coisa" ajuda a justificar a existência de AJJ.
AJJ é a face visível e mediática de um Governo Regional da Madeira que hoje em dia é uma estrutura complexa, tentacular, gigantesca, muitíssimo organizada e tecnicamente muito mais experiente e competente que qualquer outra instituição pública em Portugal. O GRM e as suas estruturas comem as papas na cabeça de qualquer governante nacional recém-eleito e dispõem de instrumentos de chantagem que usam até à exaustão e nos limites da mais elementar razoabilidade. Com 30 mil funcionários públicos numa população de 250 mil habitantes, toda a ilha depende, de alguma forma, da boa vontade dos seus governantes - esta forma de governar estabelece uma rede clientelística quase impossível de contornar, se fizermos a simples contabilização de votos dos funcionários e respectivos familiares directos e a este número associarmos o dos trabalhadores de empresas que trabalham para o Governo Regional. Olhando para o total de votos previsível à partida e tendo em conta que o PSD Madeira tem habitualmente cerca de 90 mil votos por acto eleitoral, este valor já nem sequer parece particularmente elevado, tantos seriam os votos potenciais de pessoas directamente dependentes do status quo.
Ou seja, AJJ montou uma teia de influências fortíssima e altamente condicionada, serve de rosto visível e agente desviador de atenções de uma estrutura governativa experiente, muito diferenciada e altamente complexa e sustentou tudo isso à custa de níveis de endividamento público perfeitamente obscenos, relativamente aos quais os governantes nacionais fechavam sistematicamente os olhos.
Anteontem às 4:00 da manhã, enquanto punha a minha filha mais nova a arrotar, assisti à repetição de uma entrevista a Nuno Cardoso (ex-Presidente da Câmara do Porto) no Porto Canal em que este dizia que, enquanto ex-autarca e conhecedor directo dos mecanismos de contracção de dívida por organismos públicos, não compreendia como havia sido possível "escaparem" ao controlo público valores da ordem dos que têm sido referidos na comunicação social. A resposta, perceptível entrelinhas no tom com que Nuno Cardoso falava, é bastante simples: não é possível. Houve quem soubesse exactamente o que se estava a passar em tempo real e nada fez.
Mais do que actuar sobre os prevaricadores em concreto (e a acção sobre AJJ e o Governo Regional da Madeira deve ser implacável e exemplar), há que perceber a que nível (necessariamente discreto e intermédio) da Administração Pública é que estas cumplicidades funcionam - porque é aí que este tipo de indivíduos actuam e é lá que está o ponto de fuga do sistema.
É curioso que a discussão pública esteja actualmente centrada na análise de carácter de AJJ e não em mais um estrondoso falhanço do sistema público de regulação financeira.
Depois dos escândalos de BPN, BCP e BPP, o Banco de Portugal não conseguiu colocar na lista negra uma entidade pública com créditos não cumpridos na ordem de 1,6 mil milhões de euros - ou pelo menos falhou no respectivo registo de crédito. Se um cidadão comum pedir um simples cartão de compras El Corte Inglés (ou qualquer outro com pagamento diferido) é automaticamente aberto em seu nome um registo de crédito no Banco de Portugal - e o limite de crédito desse cartão passa a contar para a capacidade de endividamento individual, sendo este um parâmetro avaliado pela banca de cada vez que esse cidadão solicita qualquer tipo de crédito. Assim, como é possível que o Banco de Portugal não tenha detectado o problema? Se houve sonegação de informação, esta não terá ocorrido também da parte da banca? Porque é que não se discute isto? Será porque este buraco também iria afectar as contas de algum banco importante?
Além do Banco de Portugal, que dizer da inércia do Tribunal de Contas? Como foi possível que uma entidade pública atingisse este tipo de endividamento sem um sério aviso e/ou uma investigação civil e criminal ao que se estava a passar?
O servilismo do jornalismo português por vezes dá náuseas...
A dívida da Madeira (como “gordura” do Estado)
De repente a dívida da Madeira saltou para as primeiras páginas e para a primeira linha das conversas. O traço mais comum dos comentários é o cansaço com a capacidade de Alberto João Jardim extrair fundos ao resto do país (há quem use termos mais fortes). O outro aspecto que tem sido focado é do efeito da dívida madeirense agora revelada na reputação internacional de Portugal, num momento em que as diferenças face à Grécia são crescentemente importantes.
Sobre estes dois aspectos, nada há mais a dizer. Há, porém, um outro aspecto que este problema ilustra. Contra o processo de consolidação orçamental e de redução de despesa pública tem sido apresentado por várias pessoas e partidos políticos a visão alternativa de fomentar o crescimento económico através da despesa pública.
Ora, a situação actual da Madeira, acusada de excessiva e preocupante pelos mesmo partidos, não é mais do que o resultado das políticas por eles preconizadas – dar rédea solta à despesa pública que esta se multiplicará, combater o desemprego através do emprego como funcionário público. Esta foi a “receita” para o crescimento da Madeira. O que se vê hoje? Para além de obras como estradas e túneis, não se encontrou uma fonte de crescimento da actividade económica que fosse duradoura. Não se reinventou o Turismo, dando-lhe novo ânimo, não se descobriram novas actividades económicas que trouxessem riqueza à região. Mais, ao cristalizar no emprego público uma fatia considerável da população activa, retirou-se a essas pessoas o interesse e a dinâmica de procurarem outras actividades económicas.
Ao seu nível, a actual situação da Madeira mostra que não é viável um modelo de crescimento assente na despesa pública pela despesa pública. Apenas quando existe onde ir buscar mais e mais fundos se consegue, durante algum tempo, sustentar essa forma de intervenção económica.
Da mesma forma que começa a ser perceptível um cansaço dentro do resto de Portugal quanto às dívidas da Madeira e o processo que a elas levou, também o Norte da Europa manifesta o mesmo cansaço quanto aos países do Sul da Europa. Só a escala do problema e do sentimento é diferente.
A lição da Madeira para todo o país não é apenas que é preciso controlar melhor. A lição mais importante, a meu ver, é que a capacidade de gerar dívida pública (e a ir escondendo) não traz a prazo crescimento económico sustentado e transforma-se apenas em mais um factor de “gordura” do Estado. E é “gordura” pelos recursos que absorveu e pelo emprego que retirou a outras actividades.
Embora este texto tenha sido escrito com o brilhantismo e originalidade característicos do autor e seja uma das excepções ao vociferar clubístico que abunda na blogosfera, julgo que ainda não foi desta que se chegou ao cerne da questão madeirense.
De facto, para prevenirmos o aparecimento de novos Jardins e disciplinarmos a actividade dos que neste momento estão caladinhos a rezar para que a Troika não tropece e descubra o seu buraco (significativamente mais pequeno, esperemos!), há que primeiro compreender o que é, quem é, como funciona um governo regional de um local como a Madeira e sobretudo como é que se podem ganhar todas as eleições em quase 40 anos de relativa democracia.
Em primeiro lugar, há que relativizar o problema: embora ofensivo, gigantesco e absurdo, o buraco de AJJ (que a 21/9/2011 vai em 1,6 mil milhões) é, ainda assim, mais pequeno que outros buracos conhecidos publicamente: 3 mil milhões do Metro de Lisboa, cerca de 2 mil milhões do Metro do Porto, 2 mil milhões do BPN, 3 a 5 mil milhões de euros (conforme a fonte noticiosa) das Estradas de Portugal, fora outros clientes habituais deste tipo de estatísticas, como a Refer, Parque Escolar, CP, TAP, RTP, etc. Ou seja, a diferença (não negligenciável ou encarável levianamente) entre AJJ e estes exemplos é apenas o facto de no primeiro caso ter existido uma ocultação da gestão ruinosa do património público.
E é neste contexto que o argumento da "legítima defesa" colhe. De facto, há uma inteligência colectiva (neste caso, dos madeirenses) que faz encarar as coisas pragmaticamente: se a gestão ruinosa dos dinheiros públicos se tornou numa prática generalizada e sistémica, que razões haverá para se mudar o actor dessa gestão? Para quê mudar as moscas? Pelo menos AJJ criou 30 mil empregos directos (à custa do sector público e com os problemas enunciados por Pedro Pita Barros) e dotou a Madeira de um conjunto de infra-estruturas e instituições que a colocam num nível consideravelmente superior ao do continente. Além disso, que se saiba AJJ não tem contas na Suíça, andares luxuosos no centro de Lisboa ou outros sinais exteriores de riqueza inexplicáveis à luz dos rendimentos conhecidos. E há que reconhecer que no Continente têm existido muito mais escândalos financeiros (BPN, BPP, empresas municipais, saco azul, etc.) que na Madeira. Ou seja, a velha teoria de que "este pelo menos faz alguma coisa" ajuda a justificar a existência de AJJ.
AJJ é a face visível e mediática de um Governo Regional da Madeira que hoje em dia é uma estrutura complexa, tentacular, gigantesca, muitíssimo organizada e tecnicamente muito mais experiente e competente que qualquer outra instituição pública em Portugal. O GRM e as suas estruturas comem as papas na cabeça de qualquer governante nacional recém-eleito e dispõem de instrumentos de chantagem que usam até à exaustão e nos limites da mais elementar razoabilidade. Com 30 mil funcionários públicos numa população de 250 mil habitantes, toda a ilha depende, de alguma forma, da boa vontade dos seus governantes - esta forma de governar estabelece uma rede clientelística quase impossível de contornar, se fizermos a simples contabilização de votos dos funcionários e respectivos familiares directos e a este número associarmos o dos trabalhadores de empresas que trabalham para o Governo Regional. Olhando para o total de votos previsível à partida e tendo em conta que o PSD Madeira tem habitualmente cerca de 90 mil votos por acto eleitoral, este valor já nem sequer parece particularmente elevado, tantos seriam os votos potenciais de pessoas directamente dependentes do status quo.
Ou seja, AJJ montou uma teia de influências fortíssima e altamente condicionada, serve de rosto visível e agente desviador de atenções de uma estrutura governativa experiente, muito diferenciada e altamente complexa e sustentou tudo isso à custa de níveis de endividamento público perfeitamente obscenos, relativamente aos quais os governantes nacionais fechavam sistematicamente os olhos.
Anteontem às 4:00 da manhã, enquanto punha a minha filha mais nova a arrotar, assisti à repetição de uma entrevista a Nuno Cardoso (ex-Presidente da Câmara do Porto) no Porto Canal em que este dizia que, enquanto ex-autarca e conhecedor directo dos mecanismos de contracção de dívida por organismos públicos, não compreendia como havia sido possível "escaparem" ao controlo público valores da ordem dos que têm sido referidos na comunicação social. A resposta, perceptível entrelinhas no tom com que Nuno Cardoso falava, é bastante simples: não é possível. Houve quem soubesse exactamente o que se estava a passar em tempo real e nada fez.
Mais do que actuar sobre os prevaricadores em concreto (e a acção sobre AJJ e o Governo Regional da Madeira deve ser implacável e exemplar), há que perceber a que nível (necessariamente discreto e intermédio) da Administração Pública é que estas cumplicidades funcionam - porque é aí que este tipo de indivíduos actuam e é lá que está o ponto de fuga do sistema.
É curioso que a discussão pública esteja actualmente centrada na análise de carácter de AJJ e não em mais um estrondoso falhanço do sistema público de regulação financeira.
Depois dos escândalos de BPN, BCP e BPP, o Banco de Portugal não conseguiu colocar na lista negra uma entidade pública com créditos não cumpridos na ordem de 1,6 mil milhões de euros - ou pelo menos falhou no respectivo registo de crédito. Se um cidadão comum pedir um simples cartão de compras El Corte Inglés (ou qualquer outro com pagamento diferido) é automaticamente aberto em seu nome um registo de crédito no Banco de Portugal - e o limite de crédito desse cartão passa a contar para a capacidade de endividamento individual, sendo este um parâmetro avaliado pela banca de cada vez que esse cidadão solicita qualquer tipo de crédito. Assim, como é possível que o Banco de Portugal não tenha detectado o problema? Se houve sonegação de informação, esta não terá ocorrido também da parte da banca? Porque é que não se discute isto? Será porque este buraco também iria afectar as contas de algum banco importante?
Além do Banco de Portugal, que dizer da inércia do Tribunal de Contas? Como foi possível que uma entidade pública atingisse este tipo de endividamento sem um sério aviso e/ou uma investigação civil e criminal ao que se estava a passar?
O servilismo do jornalismo português por vezes dá náuseas...
segunda-feira, setembro 19, 2011
O exemplo que melhor ilustra a idade deste blogue é o facto do seu autor se ter esquecido de assinalar o seu (do blogue) oitavo aniversário. Sim, estou xexé a esse ponto. Numa fase em que tenho menos visitas por mês do que há 5 anos tinha por dia, nada como fazer uma jura futebolística: vou continuar a trabalhar, dia após dia, para agradar aos misters que visitam blogues e voltar a ganhar a titularidade na equipa.
sábado, setembro 17, 2011
A principal questão do buraco orçamental madeirense não é saber como Jardim conseguiu esconder o bilião, mas sim averiguar quem é que lhe pôs o bilião nas mãos. O que aconteceu a seguir era previsível e absolutamente expectável.
Se estivéssemos no Japão estaríamos neste momento a encontrar o cadáver auto-enforcado do responsável pela entidade reguladora que foi incapaz de detectar o problema (Tribunal de Contas? Banco de Portugal?) Como estamos em Portugal a reacção oficial limitar-se-á ao habitual circo político de um PS que já se esqueceu de que a culpa por tudo o que se passou até há 3 meses é exclusivamente sua e de um PSD que (de uma forma não unânime, reconheça-se) ainda tenta amparar o jogo a Jardim.
Para resolver esta situação só pode existir uma solução: da mesma forma que Portugal abdicou da sua soberania económica para solicitar um programa de ajuda financeira à Troika, a Madeira terá que fazer o mesmo a favor do Continente, perdendo a autonomia enquanto o buraco não for reposto. Porque pior que ter um buraco destes seria dar a Jardim o dinheiro para o tapar!
Se estivéssemos no Japão estaríamos neste momento a encontrar o cadáver auto-enforcado do responsável pela entidade reguladora que foi incapaz de detectar o problema (Tribunal de Contas? Banco de Portugal?) Como estamos em Portugal a reacção oficial limitar-se-á ao habitual circo político de um PS que já se esqueceu de que a culpa por tudo o que se passou até há 3 meses é exclusivamente sua e de um PSD que (de uma forma não unânime, reconheça-se) ainda tenta amparar o jogo a Jardim.
Para resolver esta situação só pode existir uma solução: da mesma forma que Portugal abdicou da sua soberania económica para solicitar um programa de ajuda financeira à Troika, a Madeira terá que fazer o mesmo a favor do Continente, perdendo a autonomia enquanto o buraco não for reposto. Porque pior que ter um buraco destes seria dar a Jardim o dinheiro para o tapar!
Etiquetas: Política Nacional
quinta-feira, setembro 01, 2011
Uma das coisas de que gosto no Peliteiro é a coragem e falta de filtro para denunciar, com todas as letras, as coisas que ele entende que estão erradas. Este caso é gritante, emblemático e sintomático. A ler.